"Uma criança é como o cristal e como a cera. Qualquer choque, por mais brando, a abala e comove, e a faz vibrar de molécula em molécula, de átomo em átomo; e qualquer impressão, boa ou má, nela se grava de modo profundo e indelével." (Olavo Bilac)

"Un bambino è come il cristallo e come la cera. Qualsiasi shock, per quanto morbido sia
lo scuote e lo smuove, vibra di molecola in molecola, di atomo in atomo, e qualsiasi impressione,
buona o cattiva, si registra in lui in modo profondo e indelebile." (Olavo Bilac, giornalista e poeta brasiliano)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Notícias de uma adoção

Foto: Google Imagens


Um bom exemplo de adoção de crianças maiores (12 anos). Muito amor faz dar certo.

E-mail:

Estou bem e feliz com minha princesinha C.. Ela já está mais alta do que eu...e ainda brinca com as bonecas... hehehe...

Ela já está conosco fará 9 meses. E nossos sentimentos por ela são de que sempre esteve conosco.

C. está muito bem adaptada, está renascida.

No abrigo ela era um bichinho acuado, traumatizado e alienado do mundo. Não que a maltratassem lá. Não. Ela era muito bem tratada. Mas todos sabem que a realidade de abrigo não é a mesma de uma família.

Tivemos muito trabalho para ajudá-la a renascer nestes 9 meses. Muito trabalho meeeesmo. E olhem que ela é uma menina extremamente meiga. Mas valeu muito a pena! Faria tudo novamente mil vezes... hehehe...

E nessa certeza eu reafirmo que pretendo adotar mais. É maravilhosa a condição materna. É inexplicável ter tanto trabalho, sofrer, chorar às vezes, e ser mais feliz.

Nosso processo de adoção está perto de ser concluído. Nós três não vemos a hora de termos a nova certidão de nascimento da C.. Os olhinhos dela brilham só de pensar nisso. Ela demonstra a enorme importância que terá a chegada desse documento na vida dela. É para ela uma representação concreta do que já está construído no psicológico: a libertação, a transformação, o renascimento.

Deus é muito bom! Ele nos deu C.!

Queremos adotar mais. Não sei quando. Mas isso acontecerá.

Sobre a adaptação familiar, minha mãe é a única que ainda demonstra não aceitá-la realmente como nossa filha. Mas ela faz isso longe da C.. Pelo menos, ela tem esse cuidado.

Minha mãe já chegou a dizer que eu ainda não sei o que é "ser mãe", pois não "pari" e adotei uma menina "grande". Ela diz que eu apenas estou "criando" a C..

Minha mãe quase nunca me visita e não sabe do nosso convívio, não sabe dos detalhes maravilhosos que tenho vivido. Quando tento contar, ela me interrompe e muda de assunto. Ela é estranha. Mas ela sempre foi estranha para os sentimentos, nunca foi muito chegada a carinho mesmo.

Ela detesta que a C. esteja a cada dia mais linda e mais alta; e demonstra irritação quando vê a C. com roupa nova.

Mamãe sempre me diz, "coloca a C. para ajudar em casa!", "em breve a C. estará uma moçona!", "ensina a C. a cozinhar!". Isso torra a minha paciência, mas vou levando.

O fato é que eu, meu marido e C. estamos a cada dia mais em harmonia. Graças a Deus!

Abraços,

L.


Postado Por Cintia Liana

domingo, 26 de setembro de 2010

História real de adoção homoafetiva - Parte 4

Foto: Google Imagens

Parte 4

5) Bom, o nosso filho foi adotado com 4 anos e 4 meses (está com 7 anos e 4 meses) e a nossa filha nós conhecemos com 6 meses e conseguimos a guarda com 7 (Já tem certidão final também), hoje está com 1 ano e 7 meses.

Nunca sentimos preconceito algum, nem social nem jurídico (acho que tudo é questão de conduta). A escola que o nosso filho estuda (e a nossa filha vai estudar no próximo ano) é muito boa e trabalha com o conceito de respeito as diversidades.

As famílias extensivas e amigos amam os 2 e nada é escondido. O fato de não ser nada escondido também não quer dizer que gostamos de exposição. As poucas vezes que permitimos a publicação de algo teve que ser feito preservando nomes.

Temos aqui muito da presença feminina o que dá de certa forma uma referência feminina para nossos filhos, mas isto é somente um fato e não sei se é tão necessário porém no nosso caso acho bom. Li alguns artigos de psicólogas que falam sobre o assunto e dizem que o que existem são funções de pai e funções de mãe que podem ser exercidas tanto pelo pai quanto pela mãe (ou por ambos). Eu sou o mais rígido dos dois (Característica do Pai) porém sou o que não consegue tirar o olho um minuto com medo que aconteça algo (Característica da mãe).

Para terminar. Espero que um dia termine este termo “adoção homo-afetiva” pois eu sou a favor da adoção por pessoas ou casais que tenham realmente condição de ser pai e/ou mãe, seja esta adoção feitas por solteiros, homossexuais, casal homo-afetivo, casal hetero, adoção inter-racial e todas as formas de adoção aonde realmente exista a adoção de fato, mas sou contra as mesmas adoções quando a pessoa ou casal não tem condições de adotarem de fato. Em resumo, sou contra rótulos como se o simples fato de um casal homo, um casal hetero ou uma pessoa solteira poder ou não adotar, dê ou retire de todos os outros com o mesmo rótulo carimbo de capacidade. Quem vai definir não são os rótulos, e sim o estudo Psicossocial aliado a conduta do adotante.

Abs.

PS: Para quem quer saber mais, nós autorizamos que fosse feito um TCC sobre um estudo de caso (ou seja, deste nosso caso em relação a 1ª adoção ), este TCC foi feito por um psicólogo que, na época, estava terminando o curso de direito (hoje já advogado ). O TCC se transformou em artigo de uma revista jurídica e tem um link na Internet que passo abaixo. A Nosso pedido os nomes foram mudados. Eu sou o João do estudo.

Texto original da exposição (todas as 4 partes expostas aqui também):

http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=229210&tid=5486002928856943274&kw=adocao+homoafetiva


Maravilha, João! Obrigada novamente pela contribuição!
Cada vez mais percebo que quando existe preparo e coração aberto todas as portas se abrem!
Um abraço para toda a família!

Postado Por Cintia Liana

sábado, 25 de setembro de 2010

História real de adoção homoafetiva - Parte 3

Foto: Google Imagens

Parte 3

4) A adoção pelo segundo pai: Ligamos para dois grandes amigos do meio jurídico e dissemos o que estávamos querendo fazer e se eles indicavam uma boa advogada que aceitasse a causa com possibilidades de êxito, ambos indicaram a mesma advogada. Então estava resolvido, a contratamos, e o que achávamos que seria uma longa jornada terminou em 3 ou 4 meses.

Agora sim, estava tudo terminado e tínhamos em mãos a certidão contento o nome e sobrenome dos dois pais e tendo como avôs nossos pais e mães. Só uma observação: No dia da audiência, após a sentença o Juiz e a Promotora perguntaram se tínhamos intenção de adotar outra criança, ao dizermos que sim eles sugeriram que entrássemos juntos desde o início e foi o que aconteceu tempos depois quando conhecemos nossa pequena. A minha habilitação foi desconsiderada e foi tudo feito novamente, só que agora desde o começo entramos juntos como um casal com união estável e com a mesma advogada que contava agora com a experiência da primeira adoção.


Postado Por Cintia Liana

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

História real de adoção homoafetiva - Parte 2

Foto: Google Imagens

Parte 2

3) O Processo de adoção: Ligo para o fórum da pequena cidade e explico a situação, fui muito bem atendido e pediram para ligar para o Conselho Tutelar para maiores informações.

Achando que tinha todas as informações (fui informado que ele estava para adoção e não existiam pessoas interessadas), fui para o interior cheio de esperanças, porém quando chego lá e localizam o processo, descubro algo que foi um banho de água fria. Não existia a sentença de Destituição e sim tão somente uma Decisão Interlocutória (Ou seja, não estava para adoção ainda).

Fiquei meio frustrado, parei quase uma hora olhando para o nada, sentado na calçada, depois levantei, sacudi a poeira, voltei ao fórum, Li o processo junto com a técnica Judiciária e a Conselheira Tutelar e fiz a pergunta que mudou a direção das coisas. Qual o melhor advogado da Região? De posse desta informação e honorários acertados em 2 ou 3 semanas tinha a guarda de meu filho, mas a adoção final demorou quase um ano pois ainda tinha que destituir também o poder familiar. Quando por fim terminou esta parte e ele já era legalmente o meu filho, fui a comarca do interior, peguei trêmulo a certidão dele constando meu nome como pai e quando finalmente voltando para Natal e o meu celular volta a funcionar (não pegava na cidade), paro o carro e ligo para meus familiares para avisar, minha mãe ficou aliviada e disse: “-Ainda bem que tudo terminou” e ai eu respondi: “-Ainda não mãe, falta outro nome nesta certidão” e fomos para a parte final.


Postado Por Cintia Liana

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

História real de adoção homoafetiva - Parte 1

Foto: Google Imagens

Parte 1

1 ) Depois de todo o processo que nós tivemos que passar para entender sobre adoção e tirar os mitos, que creio todos os adotantes tem no começo, veio a primeira etapa, a minha habilitação.

Desde o início da minha habilitação sempre deixamos claro à Vara da Infância e Juventude que caso eu conseguisse adotar, meu companheiro entraria com um segundo processo para que fosse também juridicamente reconhecido como pai.

Nunca sentimos preconceito algum por parte de nenhum membro da VIJ de Natal, ao contrário, sempre fomos MUITO bem tratados (inclusive parecia que torciam por nós), desde o pessoal de apoio, passando pela Assistente Social, Psicóloga e findando no Juiz e Ministério Público.


2 ) Pronto, estou habilitado para uma menina branca de até 2 anos, sem problemas de saúde, a famosa visão de criança perfeita, e agora? Bom, agora tenho que estabelecer contato com crianças para entender mais sobre elas (apesar de ser tio de 14 e na época tio-avô de 1, hoje 2).

Comecei a fazer trabalho voluntário em um abrigo, ia ao menos 4 vezes por semana, levava balas, brinquedos e muito carinho.

Depois de um certo tempo entra no abrigo um caboclo que eu ainda não tinha conhecido, pois no horário que eu ia ao abrigo ele estava na creche. Brinquei muito com ele e comecei a ir em horários que sabia que ele estava lá, porém tinha na minha cabeça que não poderia criar expectativas pois eu teria que ser chamado pela VIJ e não conhecer uma criança e tentar a adoção. Mas às vezes as coisas conspiram ao nosso favor e um dia veio algo que me deixou bambo. Eu já estava no abrigo quando essa criança (hoje meu filho) estava chegando e veio correndo para me abraçar e me chamando de PAI. Desmontei na hora.

A responsável pelo abrigo, percebendo o vínculo que estava sendo formado, me chamou para conversar e foi quando ela me informou que a comarca dele não era Natal e sim uma pequena comarca do interior que não existia fila (ainda estava meio informal). Bingo. Sai de lá para falar com meu companheiro que em primeiro momento achou que fugia muito do perfil inicial (e fugia mesmo, mas às vezes o perfil inicial esta fora do que o destino nos prepara) e então resolvemos que iríamos passar um dia (junto com alguém do abrigo) com as crianças maiores que 4 anos do abrigo. Neste dia meu companheiro entendeu por que eu estava tão ligado a criança. De todas foi a que mais se divertiu, brincou, cativou e sorriu (apesar de na época ter graves problemas dentários). O vínculo estava feito e meu companheiro concordava. Vamos a luta.


No próximo post a continuação desta linda história.

Este é um texto cedido por um novo amigo meu da adoção. Em nome da luta pela adoção ele me enviou um texto adaptado  em um curso virtual em uma comunidade na internet - GVAA - Adoção,um exemplo de amor - com 43.763 membros.

O autor se coloca a inteira disposição para responder à perguntas. Podem deixar suas perguntas na parte de comentários e se preferirem coloquem seus respectivos e-mail, se não, ele responderá também na parte de comentários.

Texto original da exposição:

Agradeço o texto e parabenizo esta pessoa tão guerreira, que corre atrás de seus direitos enfrentando todos os obstáculos e se realizando enquanto pai e homem no mundo. 


Postado Por Cintia Liana

terça-feira, 21 de setembro de 2010

História 7

Foto: Google Imagens

Revista Veja São Paulo

"O bom é que tem bastante festa de natal por aqui." – Fernando

Rosto miúdo, sorriso generoso, Fernando Tobias Vitório de Oliveira, de 9 anos, é um menino que já fabula. Basta dar atenção e ele emenda uma história atrás da outra. Sempre com a fantasia pintando cores que sua realidade não tem. "Eu tinha um cachorro doberman chamado 'Snoopy'", começa a narrar. "Ele era bonzinho, aí veio um bêbado e deu uma paulada na cabeça dele. Encontrei ele morto quando fui comprar pão e leite, enterrei e nunca mais quis outro cachorro." Depois vem com lembranças da mãe: "Ela contava histórias para mim e meus irmãos na hora de dormir, e a gente ouvia uma caixinha de música". Isso tudo foi antes de ele e seus três irmãos menores irem para o Solar da Alegria, no bairro do Belém, uma das três unidades de abrigo e encaminhamento que a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, Febem, mantém na cidade. A mãe perdeu a guarda dos quatro meninos por não ter condições de sustentá-los.

O Solar é um abrigo temporário para menores de 0 a 6 anos. Eles podem ficar lá até três meses. Depois disso, retornam às famílias ou são encaminhados para uma entidade que admita permanência longa. Pela idade, Fernando não poderia estar no Solar. No início ficou lá para não se separar dos irmãos. Depois, por estar cursando uma escola vizinha — apesar de os irmãos terem seguido para outra instituição.

"O bom é que tem bastante festa de Natal por aqui", diz, falando dos eventos agendados com antecedência por benfeitores. "Perdi algumas porque vou visitar meus irmãos no domingo." Nesses dias, ele se reúne com a mãe e os irmãos por algumas horas. Não é o bastante. Por isso, pede duas coisas ao velhinho de barbas brancas, desenhado com capricho em seu caderno: uma bicicleta e poder festejar o Natal com a família. Um pouco do que ele quer deve tornar-se realidade. Nesta semana ele se juntará aos irmãos na outra instituição.

Publicação - Revista Veja São Paulo
Circulação - São Paulo – SP
Data - 23/12/98
Edição – 1578
Assunto - Abandono – Institucionalização
Título - Sete Histórias de Natal de Meninos e Meninas Carentes
Autora - Mirian Scavone


Postado Por Cintia Liana

domingo, 19 de setembro de 2010

História 6

Foto: Google Imagens

Revista Veja São Paulo

"Eu quero o anjinho para me proteger." – Angélica

A frase sai direta, misturando alegria com inquietação, naquele jeito ingênuo de criança. "Minha vó quer me levar", diz Angélica Ramos, 9 anos. Logo depois, seus olhos refletem a incerteza. Como seria passar a morar com dois irmãos menores, na casa da avó que mal conhece?

Angeliquinha, como gosta de ser chamada, está na Casa Vida desde os 3 anos. No confortável sobrado construído especialmente para abrigar catorze meninos e meninas portadores do HIV, ela se sente realmente em casa. Escolhe o CD, canta, dança, elogia as duplas sertanejas, sorri encabulada ao falar do grupo musical Hanson. Mostra, nos seis quartos, quem dorme em cada uma das camas — cuidadosamente arrumadas, com brinquedos sobre o travesseiro. Abre as portas e explica o funcionamento desse lar. "Aqui é a sala de estudos, aqui a farmácia, aqui o escritório..." Na lavanderia, fica emburrada ao ver que o tênis não estará seco até a hora da escola. Logo renova a pose, enquanto desfila pelo corredor com o uniforme do colégio. Chama de pai o padre Julio Lancellotti, que criou a instituição em 1991 e ainda hoje comanda o trabalho nas duas casas (na outra ficam vinte crianças de até 6 anos). A coordenadora Rosana Soares Ribeiro ela chama de mãe. Namora o Anjo do Gugu, boneco que permanece na caixa até que um adulto tome a difícil decisão de escolher quem será contemplado com o cobiçado presente.

Agora, Angélica terá uma primeira oportunidade de se acostumar com a avó. Na noite de Natal estará com ela e os dois irmãos que vivem em outra instituição. "Natal? É a festa do menino Jesus, o aniversário dele", diz. "Tem também o Papai Noel, que traz uns presentes. A gente não pode pedir porque é falta de educação, mas pode querer. Eu quero o anjinho para me proteger."

Publicação - Revista Veja São Paulo
Circulação - São Paulo – SP
Data - 23/12/98
Edição – 1578
Assunto - Abandono – Institucionalização
Título - Sete Histórias de Natal de Meninos e Meninas Carentes
Autora - Mirian Scavone


Postado Por Cintia Liana

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

História 5

Foto: Google Imagens

Revista Veja São Paulo

"Esse lugar é tão grande, deve ter uma chaminé." - Jaqueline

No quarto das meninas do Lar de Infância Nice, encharcado da luz do sol que entra pelas janelas altas e sem cortinas, a cena é dominada por bonecas e bichos de pelúcia. São muitos, espalhados sobre as dezoito camas tubulares cor-de-rosa arrumadas com colchas de estampa delicada.

Logo na entrada fica a de Jaqueline Nucci de Souza, de 9 anos. Desde os 3 ela vive na instituição fundada pelo Centro Espírita Irmã Nice na década de 60 — uma época em que não se falava em abrigo, mas em orfanato, e as crianças cumpriam uma espécie de sentença de prisão dentro das casas assistenciais. Ela garante que esses tempos não têm nada a ver com sua rotina. Vai à escola, nada em um clube municipal nos finais de semana e, de vez em quando, recebe amiguinhas em seu quarto. Suas roupas, compartilhadas com as outras internas, estão sempre limpas e passadas.

Jaqueline tem dois sonhos. Um é o de tornar-se salva-vidas. O outro é de um dia ser adotada por uma família argentina, só para ter mais chance de conhecer as Chiquititas. "Se não der, tudo bem, sou muito feliz aqui", diz a menina, abandonada ao nascer.

Sua única referência familiar é a avó materna, que a visita uma vez por ano. Nem a ela Jaqueline pergunta dos pais que nunca conheceu. "Tenho um monte de mães, tias e irmãos. A gente se adora." Com eles, montou o presépio com mais de trinta peças e a árvore de Natal colocada na entrada dos visitantes. Nesta semana todos se reunirão na festa natalina oferecida por benfeitores da entidade. "É o dia mais feliz do ano", ela garante, mexendo nos brinquedos que recebeu nos últimos dias. Tem uma Barbie, um bambolê, sapatos e vestidos. "A bicicleta eu acho que é o Papai Noel quem vai trazer." Preocupada com a chegada do velhinho, ela pensa por onde ele poderia entrar. Logo se acalma. "Esse lugar é tão grande, deve ter uma chaminé em algum canto."

Publicação - Revista Veja São Paulo
Circulação - São Paulo – SP
Data - 23/12/98
Edição – 1578
Assunto - Abandono – Institucionalização
Título - Sete Histórias de Natal de Meninos e Meninas Carentes
Autora - Mirian Scavone


Postado Por Cintia Liana

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

História 4

Foto: Google Imagens

Revista Veja São Paulo


"Se ela me der um brinquedo e fizer uma lasanha vai ser a melhor coisa do mundo." - Márcio

A mala já está pronta. Marcio Felix de Carvalho não agüenta de ansiedade. No dia 22, ele pegará o ônibus com a avó materna para passar o Natal na casa dela, em São Manuel, a 291 quilômetros da capital. Será a primeira viagem dos seus 8 anos de vida, e também a primeira visita à casa de um parente após três anos de afastamento.

Desde 1996, ele e o irmão Romário, de 6 anos, estão sob a guarda e os cuidados do Movimento de Assistência aos Encarcerados do Estado de São Paulo, o Maesp, criado por um grupo de evangélicos. Não sabem do paradeiro dos pais, e pouco lembram do passado. Marcio diz apenas que sua história não é boa. "Agora é bem melhor, tenho comida quentinha e até ganhei uma camiseta do Batman", conta.

Apesar do aperto financeiro pelo qual passa a instituição, ali ninguém tem fome ou vive com roupa rasgada. Para manter as contas em dia, os funcionários promovem jantares, bazares e venda de quadros pintados pelos pequenos. As doações são cada vez mais escassas. O que ajuda é o corpo de voluntários. Alguns até levam as crianças para suas casas na semana do Natal e Ano Novo, quando o abrigo fica fechado.

No ano passado, Marcio passou essas datas junto com a família de uma das mulheres do voluntariado. Aprendeu a mexer em computador e surpreendeu a todos com sua habilidade. Ainda assim, finca pé na intenção de ser jogador de futebol. Estuda duro de manhã, para poder treinar seus chutes na Escola de Futebol do Marcelinho, no Ipiranga, à tarde. Nesta semana de Natal, ele pretende exibir suas qualidades de boleiro à avó. Em troca, espera recompensas simples. "Se ela me der um brinquedo e fizer uma lasanha vai ser a melhor coisa do mundo."

Publicação - Revista Veja São Paulo
Circulação - São Paulo – SP
Data - 23/12/98
Edição – 1578
Assunto - Abandono – Institucionalização
Título - Sete Histórias de Natal de Meninos e Meninas Carentes
Autora - Mirian Scavone


Postado Por Cintia Liana

domingo, 12 de setembro de 2010

História 3


Foto: Irene Lamprakou

Revista Veja São Paulo


"A gente só ganha se alguém der dinheiro para comprar" – Alaíde

Este Natal promete ser bem melhor para Alaíde Marques Miranda, de 8 anos, uma das 85 crianças que vivem na Aldeia SOS de Rio Bonito, no Jardim Colonial. Há dois meses, ela ganhou uma madrinha dinamarquesa. A mulher de falar estranho veio ao Brasil só para conhecê-la, passou horas a seu lado, tirou fotos e deixou na afilhada a esperança de receber um presente até o dia 25.

No Natal passado, sem madrinha, Alaíde ficou de mãos vazias. "Acho que vai chegar dinheiro para minha mãe social comprar uma Barbie", acredita. A mãe social, no caso, é Adelaide Tonon da Silva, de 52 anos. Funcionária da organização não governamental criada na Áustria em 1949 e presente em diversos países,

Adelaide é encarregada de administrar uma das onze casas de três quartos, sala, cozinha e banheiro. Mora lá, cuidando de Alaíde e de outras sete crianças. Como se fosse uma família, sem pai. Recebe mensalmente 800 reais. Com essa quantia deve garantir aos pequenos comida, roupa, educação e higiene. Para brinquedos, dificilmente sobra algum.

É o segundo final de ano que Alaíde passa com a família social. "Natal é um dia legal, com uma festa bonita em salão e comida diferente", define. "Eu como muita uva e melancia."

Quando tinha 3 anos, Alaíde perdeu a mãe biológica. Sem parentes, foi encaminhada à adoção. Quatro anos depois, em 1997, alegando dificuldades para cuidar da menina, os pais adotivos a entregaram à instituição. Entre as poucas lembranças desse passado conturbado que ela comenta, fala de um certo Papai Noel que viu na escola, antes de chegar à Aldeia. "Ele é bom, traz presentes, mas sei que é um homem disfarçado", diz. Pela própria experiência, ela não tem ilusões quanto à origem dos brinquedos que chegam. "A gente só ganha se alguém der o dinheiro para comprar", descobriu.

Publicação - Revista Veja São Paulo
Circulação - São Paulo – SP
Data - 23/12/98
Edição – 1578
Assunto - Abandono – Institucionalização
Título - Sete Histórias de Natal de Meninos e Meninas Carentes
Autora - Mirian Scavone


Postado Por Cintia Liana

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

História 2

Foto: Google Imagens

Revista Veja São Paulo


"Tenho muita vontade de conhecer o mar..." – Keila

Desde quando era bebê, há onze anos, Keila Suzana Carvalho de Andrade vive no rígido ambiente religioso da Casa de Maria, um abrigo com 150 crianças que mantém a austera disciplina de antigos orfanatos católicos.

Keila acorda às 5h30, toma banho e veste o uniforme da instituição — calça de moletom cinza, camiseta e tênis brancos. Vai para a escola e, na volta, assiste ao capítulo da novela Chiquititas gravado na noite anterior. Às 19h, recolhe-se ao quarto. É hora de conversar com as amigas. Nada de TV. Nos poucos domingos em que ficou diante da telinha até mais tarde acabou dormindo na oração matinal.

Em meio a tal rotina, Keila não encontrou espaço para acreditar em Papai Noel. Quando era pequena, alguém disse que ele havia subido em um avião, saltado e morrido. Para ela, pareceu convincente.

Keila aprendeu a não sentir falta da mãe biológica. Só sabe que ela a deixou no orfanato e nunca mais voltou. "Não me interesso porque nem a conheci", diz, com a naturalidade de quem se habituou a ausências, rigidez e renúncias. Alegra-se com coisas simples.

Como sua roupa predileta, a de domingo: saia comprida, listrada de branco e azul, e camisa de algodão branca com a imagem de Nossa Senhora e o Menino Jesus. Sabe que na ceia de Natal todos estarão comendo na imensa mesa do quintal, onde serão distribuídos os presentes doados à Casa de Maria. Não faz pedidos, mas tem lá suas preferências. "Seria bom ganhar um fichário com uma estampa do gato Frajola", sonha. "Também tenho muita vontade de conhecer o mar..."

Publicação - Revista Veja São Paulo
Circulação - São Paulo – SP
Data - 23/12/98
Edição – 1578
Assunto - Abandono – Institucionalização
Título - Sete Histórias de Natal de Meninos e Meninas Carentes
Autora - Mirian Scavone


Postado Por Cintia Liana

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Sete Histórias de Natal de Meninos e Meninas Carentes


Foto: Google Imagens

Revista Veja São Paulo

Existem na cidade de São Paulo muitos abrigos destinados a cuidar de crianças que, por algum motivo, não têm um ambiente familiar que as acolha. Já não se usa mais a palavra orfanato para definir esses lugares, pois o que produz menores carentes não é somente a morte dos pais, mas também outros dramas, como o abandono, a miséria, os maus-tratos. Desde 1990, quando foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, as entidades sérias dedicadas a esse tipo de proteção mudaram de nome e de objetivos. Deixaram de ser depósitos de rejeitados para tentar mudar o destino dos internos, seja encontrando pais adotivos, seja promovendo seu retorno à família original. Passaram a dar-lhes, enfim, o direito de ter esperança num futuro melhor. É por isso que, apesar das agruras, meninos e meninas nessa situação ainda encontram motivos para sorrir — especialmente na época do Natal, quando o espírito solidário motiva a chegada de presentes, visitas e festas preparadas só para eles.

Ricardo, Keila, Alaíde, Marcio, Jaqueline, Angélica e Fernando, que você conhecerá melhor nas próximas páginas, expressam bem essa alegria. Há muitas formas de ajudá-los e aos milhares de pequenos que vivem nas centenas de abrigos na cidade. Em muitos casos, o melhor a fazer é cercá-los com o calor que só existe de verdade na relação entre pais e filhos. Nem sempre, porém, a adoção é possível. Algo que pode ser feito em favor de toda essa gente miúda são doações às entidades que cuidam deles.

Para conhecer algumas das mais sérias, basta consultar as relações existentes no site do projeto Bem Eficiente (http://www.melhores.com.br) ou falar com o Conselho Municipal da Criança e do Adolescente ( 225-9077, ramal 23 ou 24). Pode-se também apoiá-las como voluntário (cadastrando-se pelo site http://www.voluntarios.com.br) ou até ficar com um dos abrigados em casa na época do Natal. Se nada disso estiver a seu alcance, agende uma visita à entidade. Não custa nada e vale muito. Toda criança adora ver que alguém pensou nela.

Com reportagem de Anna Paula Buchalla, Gabriel Pillar Grossi, Gabriela Erbetta, Iracy Paulina e Viviane Kulczynski.


Seguem 7 histórias reais, uma por postagem.


História 1

"Quero um trem, um boneco, reportagem de capa uma mãe e um irmão" – Ricardo

Saber quem é o velhinho que traz os presentes no dia de Natal não é a única curiosidade que Ricardo Martins expressa no olhar. Há muitas outras, entre as quais descobrir algum detalhe sobre o próprio passado. Acometido de uma espécie de amnésia, ele não se lembra da família nem sabe dizer quanto tempo esteve abandonado nas ruas da cidade. Perambulava pelo centro, em meados do ano passado, quando foi recolhido, levado a uma unidade da Febem e encaminhado ao abrigo do Movimento de Apoio à Integração Social, Mais. Desde então tem recebido o cuidado da entidade e de seus 120 voluntários, encarregados de dar a melhor vida possível às oitenta crianças que aguardam um destino — seja a adoção, seja o retorno à família de origem. Segundo exames médicos, Ricardo tem por volta de 7 anos.

Sentado junto do pinheirinho enfeitado no saguão, ele fala sobre o Natal do ano passado, o único que ficou gravado em sua memória. "Papai Noel chegou de helicóptero e distribuiu presentes para todos", conta. "Ele mora longe, precisa vir voando."

Fã de Ronaldinho e dos personagens de desenho animado Rei Leão e Hércules, o garoto procura imitar um pouco de cada um. Cortou o cabelo bem curto, como o craque. Adora a natureza, como o leãozinho dos estúdios Disney. De Hércules, copiou a coragem. "Nunca tive medo de nada, nem quando dormia em casa abandonada", diz.

Matriculado no pré-primário, descobriu a magia do lápis e do giz de cera. Vive desenhando. Já rabisca algumas letras e exibe orgulhoso, num pedaço de papel, as iniciais de seu nome. Ainda não consegue escrever uma lista de presentes. "Não precisa, né?", conclui. "Papai Noel sabe que eu quero um trem de plástico, um boneco, uma mãe e um irmão", pede. "Se não der, tudo bem, já ganhei uma bola mesmo."

Publicação - Revista Veja São Paulo
Circulação - São Paulo – SP
Data - 23/12/98
Edição – 1578
Assunto - Abandono – Institucionalização
Título - Sete Histórias de Natal de Meninos e Meninas Carentes
Autora - Mirian Scavone


Postado Por Cintia Liana

terça-feira, 7 de setembro de 2010

As Vítimas da Inconseqüência

Foto: Google Imagens

Jornal O Dia - RJ

Uma pesquisa do Juizado da Infância e da Juventude montou, durante três meses, uma pequena radiografia da situação de 932 menores que foram recolhidos na cidade e encaminhados para 32 instituições: 100% das crianças têm família. Foram largadas pelos pais ou fugiram de casa devido aos maus-tratos. O mais assustador é que 12% foram abandonados antes de completarem um ano de vida. Somente nesta semana, o juizado registrou o abandono de seis bebês nas ruas do Rio.

O caso mais recente pegou de surpresa a moradora da Rua Maria Amália, na Tijuca. Anésia Santiago da Silva, 42 anos, levou um susto em casa ao ouvir o choro estridente de um bebê, por volta das 21 h de quinta-feira. Nervosa, abriu a porta e encontrou, enrolado numa manta branca, um bebê moreninho de aproximadamente 20 dias, ao lado de uma bolsa de roupas.

Apanhou o bebê e o levou para dentro, constatando logo que estava com diarréia. Ela chamou a vizinha Lúcia Veiga de Lima, 40 anos, e as duas deram banho e mamadeira. Preocupada com a possibilidade de que o bebê tivesse sido roubado, dona Anésia decidiu levá-lo à 19ª DP (Tijuca), onde o caso foi registrado.

"Fiquei com muita pena de ver o bebê abandonado, mas não queria que ele ficasse na delegacia", disse Anésia. Casada e com uma filha de 13 anos, Anésia gostaria de adotá-lo, mas confessou que tem problemas de saúde que a impede de ficar com a guarda dele. Ela encontrou o bebê vestido com um macacão azul e os remédios Nistatina (para o intestino) e Sulfato Ferroso gotas (vitaminas) na bolsa.

O bebê foi levado para o abrigo do Cemasi Ayrton Senna, na Tijuca onde recebeu o nome provisório de Ricardo Senna. Ontem, Ricardinho foi adotado por uma das 120 famílias cadastradas no programa de adoção da 1ª Vara da Infância e da Juventude, e ganhou o nome Caio.

5 Minutos com Siro Darlan
"Não vamos prejudicar nossas crianças".
Em apenas uma semana, seis bebês foram abandonados pelos pais nas ruas do Rio e encaminhados para a 1ª Vara da Infância e da Juventude. Além de ajudar na procura de um novo lar, o juizado prepara um curso para tentar reeducar as famílias que mendigam e exploram o trabalho de seus filhos. De acordo com o juiz Siro Darlam os pais que não aproveitaram a chance e reincidirem serão responsabilizados com base no Estatuto da Criança e no Código Penal. A punição pode chegar a três anos de detenção.

l - O que mais chamou a atenção do senhor nessa pesquisa?
Foi descobrir que em 100% dos casos as crianças que foram recolhidas nas ruas têm famílias; em 12%, têm menos de 1 ano de vida e em 70%, são menores explorados pelos próprios pais.

2 - Por que o Juizado resolveu fazer esse estudo?
Para fazer com que a criança seja reintegrada a sua família. Elas não são órfãs.

3 - O Juizado estará dando uma chance a esses pais?
Exato. Vamos primeiro dar uma oportunidade, oferecendo bolsas de alimento, roupas e vale-transporte durante o curso. Depois vamos buscar pessoas que desejem apadrinhar uma família, pagando um salário mínimo por mês para que a criança fique na escola.

4 - O que pode acontecer, caso o trabalho do Juizado não dê o resultado esperado?
Os que voltarem para as ruas para mendigar poderão perder a guarda dos filhos, que serão levados para abrigos públicos, e ainda terão que responder ao Estatuto da Criança e ao Código Penal, por exploração da criança e abandono material, por exemplo, podendo pegar até dois anos de detenção.

5 - Nesse caso, o afastamento de pais e filhos não acabará sendo uma punição para a criança, que será privada do convívio familiar?
Quer punição maior do que ser maltratado e negligenciado? Se a família é capaz de explorar o filho, ela não merece ficar com a criança, que deve ser encaminhada a instituições. De forma alguma queremos prejudicar a criança, nossa intenção é protegê-la.

Publicação - O Dia
Circulação - Rio de Janeiro – RJ
Data - 10/10/98
Assunto – Abandono
Título - As Vítimas da Inconseqüência


Postado Por Cintia Liana

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A adoção homoafetiva é juridicamente possível?

Foto: Google Imagens


Sim. No Brasil o homossexual pode adotar, inclusive um par, dois conviventes. Houveram casos no Brasil onde os dois adotaram juntos, foram casos isolados e realizados por pessoas muito corajosas, que enfrentaram muitos preconceitos. Seus advogados encontraram uma abertura no ECA, onde dizia que uma criança poderia ser adotada por duas pessoas em união estável e não dizia que essas pessoas deveriam ser de sexos diferentes. Essas pessoas encontraram bons juízes que sentenciaram a favor das adoções e entenderam que isso faria bem para a criança que já estava adaptada.

A nova lei de adoção incluia no seu texto original a possibilidade explicita de adoção por casais homoafetivos e a bancada evangelica tanto fez que retiraram esta possibilidade explicita do texto, porém não houve no texto a impossibilidade e a proibição (só a retirada da permissão explicita no texto), voltando a situação ser como antes (não explicitamente permitida e nem proibida), com possibilidade de adoção, mas cabendo aos interesados buscarem seus direitos pelas brechas da lei e pelo fato de não haver uma proibição explicita.

Quando era perita de uma vara da Infância no Brasil vi alguns homossexuais adotando sozinhos por medo de se exporem ao decidir adotar com o seu convivente e também por insegurança, achando que o juiz poderia se colocar contra a habilitação em dois.


Por Cintia Liana

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Família e o processo de diferenciação na perspectiva de Murray Bowen

Foto: Google Imagens


Elizabeth Medeiros de Almeida MartinsI; Elaine Pedreira RabinovichI; Célia Nunes SilvaI,II

I Universidade Católica do Salvador, Brasil
II Universidade Federal da Bahia, Brasil

(...)
Bowen foi um estudioso, investigador e professor considerado um teórico inovador da terapia de família. Seu arcabouço teórico concentra-se em torno de duas forças vitais que se contrabalançam: aquelas que levam a pessoa à união com sua família e aquelas que a impulsionam para se libertar rumo à individuação. Quando ocorre um desequilíbrio dessas forças em direção à união, ocorre fusão, aglutinação e indiferenciação. Essas noções estão imbricadas, no estudo da complexidade da formação emocional do indivíduo, em torno dos conceitos de massa indiferenciada do ego; diferenciação do self; processo de projeção familiar; processo de transmissão multigeracional; posição entre irmãos; e triângulo, que apresentaremos a seguir (Bowen, 1989; Kerr & Bowen, 1989). São esses conceitos que exporemos a seguir, baseados no autor e em autores que o complementam.

Bowen e sua equipe, a partir de estudos sobre a esquizofrenia, em 1954, observaram um apego simbiótico do paciente à sua mãe, ampliando essa hipótese para os demais membros da família. Desse olhar para a família e para o seu processo emocional, Bowen construiu seus principais conceitos.

O conceito de massa indiferenciada remete ao de fusão ou aglutinação, termo utilizado por Minuchin (1982) para se referir a um estilo transacional caracterizado por um “sentimento de pertencimento que requer uma máxima renúncia de autonomia” (p. 60). Essa força de aglutinação em permanente tensão, exposta aos fatores externos que também exercem influência nas relações familiares, existe em todas as famílias, em variados graus de intensidade. O estresse originado de diferentes fatores psicossociais aumenta a força de união que age sobre a massa indiferenciada do ego, propiciando uma maior aglutinação de seus membros.

Foley (1990) refere-se a três maneiras utilizadas pelo casal para controlar a intensidade da fusão do ego com a massa do ego da família. A primeira se expressa pelo conflito conjugal. A segunda é marcada pelo aparecimento de uma disfunção em um dos cônjuges – assim, um deles cederá ao outro, tornando-se dependente. A terceira maneira usada pela díade conjugal, visando aliviar a situação estressante, é a transmissão da tensão para um ou mais dos filhos, que apresentará algum sintoma.

Toda criança nasce fusionada, indiferenciada em relação à sua família. Durante seu desenvolvimento, sua principal tarefa será diferenciar-se para alcançar autonomia e independência. Na família, as crianças experimentam tanto o pertencimento quanto a diferenciação. Pertencer significa participar, saber-se membro desta família, partilhar as suas crenças, valores, regras, mitos e segredos. Diferenciar refere-se à afirmação de sua singularidade, à sua individuação e ao seu direito de pensar e expressar-se independentemente dos valores defendidos por sua família.

Segundo Nichols e Schwartz (1998), a diferenciação do self, pedra fundamental da teoria de Bowen, é ao mesmo tempo um conceito intrapsíquico e interpessoal. “A diferenciação intrapsíquica é a capacidade de separar o sentimento do pensamento” (p. 312). Kerr e Bowen (1988) denominaram reação à resposta impulsiva.

A escala de diferenciação do self ajuda a compreender o processo de amadurecimento do indivíduo, as respostas significativas, o funcionamento e as disfunções ocorridas nos processos relacionais. Essa escala, de uma importância teórica mais do que classificatória, é dividida em quatro quadrantes: no quadrante inferior, a diferenciação do eu é mínima. As pessoas que funcionam nessa categoria vivem em um mundo de sentimentos e são quase inteiramente dependentes das demais. São pessoas incapazes de distinguirem a emoção da razão. São extremamente reativas e apresentam dificuldades relacionais. No segundo quadrante (25-50), estão aquelas pessoas ainda pobremente diferenciadas, mas capazes de funcionarem de maneira limitada. São pessoas facilmente influenciadas, pois não têm opiniões próprias. No terceiro quadrante (situado entre 50 e 75), estão pessoas que têm opiniões bem diferenciadas, conseguem assumir a “posição eu” e apoiar-se menos no julgamento dos outros. No quarto quadrante (situado entre 75-100), estariam aquelas dotadas de uma plena maturidade, que funcionariam com alto grau de independência. São pessoas seguras de si, com opinião bem definida, embora não necessitem expressá-las de forma dogmática ou rígida. Assumem responsabilidade por seus atos, são tolerantes a opiniões divergentes e não entram em debates para provar que estão certas.

A família é considerada uma unidade emocional. Segundo Papero (1998), “seus membros acham-se ligados uns aos outros de tal maneira que o funcionamento de cada um automaticamente afeta o dos demais” (p. 72). O sistema emocional responde de acordo com forças externas à família, incluindo a família ampliada, situações de trabalho e fatores sociais. “Para um indivíduo ou grupo em particular, as seqüências comportamentais e interacionais que refletem o sistema emocional possuem uma característica de repetição” (Papero, 1998, p. 74).

O sistema emocional humano é passível de ser influenciado pela ansiedade crônica, (Kerr & Bowen, 1988), um estado ou condição crônica de existência, independente de qualquer situação ou estímulo, gerando o apego ansioso, “uma forma patológica de ligação orientada pela ansiedade e pela emocionalidade que subvertem a razão e o autocontrole” (Nichols & Schwartz, 1998, p. 310).

Nichols e Schwartz (1998) ressaltam que o apego emocional é um dos aspectos fundamentais da diferenciação. A dinâmica básica subjacente ao apego emocional seria a alternância entre ansiedade de separação e de incorporação. “A fusão emocional entre a mãe e o filho(a) pode assumir a forma de um vínculo dependente afetivo ou uma luta conflituosa” (p. 314).

Projeção familiar é o processo pelo qual os pais transmitem aos filhos sua imaturidade e sua indiferenciação conforme expressas no relacionamento (Kerr & Bowen, 1988). A projeção é diferente do “cuidado” e se caracteriza por uma preocupação ansiosa, confusa e excessiva com um ou mais filhos ou filhas. O filho escolhido, objeto da projeção dos pais, torna-se o mais ligado a eles e, conseqüentemente, aquele com um nível mais baixo de diferenciação do self. Esse filho busca ativamente o papel de bode expiatório e “apesar disso, a ‘vítima’ recebe seu carinho, ainda que negativo” (Foley, 1990, p. 105).

A mãe transmite sua ansiedade ao transferir para o filho uma carga emocional de suas frustrações, ao invés de estimulá-lo no seu processo de diferenciação. Dessa forma, prejudica emocionalmente o filho, que se torna infantilizado, desenvolvendo aos poucos sintomas de imaturidade psicológica.

O processo de transmissão multigeracional, também exposto por Kerr e Bowen (1988), corresponde à passagem do processo emocional da família através de várias gerações, tanto do marido quanto da mulher. O fluxo de ansiedade de uma família pode ser tanto vertical quanto horizontal.

O fluxo vertical em um sistema inclui padrões de relacionamento e funcionamento que são transmitidos para as gerações seguintes de uma família principalmente através do mecanismo de triangulação emocional... questões opressivas familiares com os quais nós crescemos... O fluxo horizontal no relacionamento familiar inclui a ansiedade produzida pelo estresse na família conforme ela avança no tempo, lidando com as mudanças e transições do ciclo de vida familiar. (Carter & Mc Goldrick, 1995, pp. 11-12)

Eventos estressantes podem levar a família à disfunção por várias gerações posteriores. Retratam uma situação de aumento das tensões familiares eventos tais como: morte prematura, nascimento de uma criança deficiente, enfermidade, acidente, entre outros. Segundo Papero (1998), aplica-se o conceito de processo de transmissão multigeracional “ao modo pelos quais os processos de projeção familiar, repetidos de geração em geração durante longos períodos de tempo, levam diferentes ramos de uma família a alcançar níveis mais baixos ou mais altos de diferenciação” (p. 87).

A escolha do parceiro no matrimônio está relacionada ao nível de diferenciação do eu. A pessoa tende a escolher o parceiro com nível de diferenciação semelhante ao seu. Os vários filhos podem ter níveis diversos de diferenciação, mas não muito distantes daqueles alcançados pelos pais.

É importante a posição da pessoa na família de origem e nas relações futuras com o cônjuge (Bowen, 1991). A posição fraterna pode predizer algumas dificuldades conjugais. Aqueles que contraem matrimônio com cônjuge da mesma posição fraterna terão mais dificuldades de adaptar-se ao casamento do que aqueles que se casam com cônjuge de posição complementar. A relação entre irmãos é considerada “o primeiro laboratório social, no qual as crianças podem experimentar relações com iguais. Dentro desse contexto, as crianças apóiam, isolam, escolhem um bode expiatório e aprendem umas com as outras” (Minuchin, 1982, p. 63).

O conceito de triangulação se refere a um sistema inter-relacional entre três pessoas, envolvendo sempre uma díade e um terceiro, que será convocado a participar quando o nível de desconforto e de ansiedade aumentar entre as duas pessoas. Uma delas, então, buscará uma terceira para aliviar a tensão. Os triângulos aparecem no processo emocional interacional que se estabelece no sistema familiar e transgeracional. Calil (1987) considera o triângulo como “um bloqueador das emoções de um sistema” (p. 103).

Sair das triangulações orienta o outro a um relacionamento em nível superior de maturidade. Os triângulos, para Kerr e Bowen (1988), “são para sempre” (p. 135). Em situações de menor tensão, permanecem latentes, reaparecendo quando os conflitos recrudescem. Assim, os triângulos são susceptíveis à ansiedade, tornando-se mais ou menos ativos em situações de tensão. Nesse sentido, o processo de triangulação constitui um mecanismo de resposta que acontece nos processos relacionais ante situações estressantes.

Na família, observam-se vários triângulos que se formam e se desfazem de forma repetitiva. Os triângulos não são fixos nem estáticos, sofrendo deslocamentos, a depender do nível de ansiedade e da dinâmica interna da família. É importante ressaltar que estão ligados a uma unidade emocional mais ampla, de onde também recebem influência, denominada triângulos entrelaçados, onde “a ansiedade, incapaz de ser contida dentro de um triângulo, se expande para um ou outro triângulo” (Kerr & Bowen, 1988, p. 139). Esses autores denominam esse processo de ativação de triângulos imbricados, que podem ser de difícil observação.

Para Andolfi e Ângelo (1988), compreender a entrada de um terceiro elemento nas díades em situação de conflito “acrescenta uma dimensão desconhecida à interação, viabilizando alianças, além de uma nova relação de inclusão-exclusão... como também pode estimular a manifestação de recursos individuais ocultos e a evolução do sistema” (p. 33).

O entendimento dos processos de triangulação está ligado à compreensão de como se dá o processo de comunicação, como a partir da linguagem não-verbal – tom de voz, mudanças na postura corporal e outros sinais não verbais – que podem ou não ativar os triângulos.

A teoria boweniana enfatiza que, para compreender a família, é necessário desvelar o que acontece nas gerações que a precederam e ampliar o olhar para a família extensa, elucidando vários nós que, no estudo estritamente da família nuclear, podem permanecer obscurecidos. Cada indivíduo:

é parte de uma rede de relações que envolvem as respectivas famílias de origem.... Através de interações que permitem a cada pessoa experimentar o que é e o que não é admissível na relação, é criada a base de uma unidade sistêmica. (Andolfi, Ângelo, Menghi, & Corigliano, 1984, p. 18)

Não existem famílias isoladas, e sim uma complexidade social, econômica e política em que essas famílias estão imbricadas (Rabinovich, 2002). Pensar a diferenciação do self familiar atualmente requer entender as novas configurações da família em suas várias expressões do processo emocional societário. Note-se que o pólo de tensão nas famílias aumenta, complexifica-se e expande-se rapidamente, mediado pelos meios de comunicação e pelos avanços tecnológicos que ocorrem na sociedade contemporânea.

As famílias constituídas hoje passam por mudanças sucessivas, de modo que, “se reconhecermos que há novos e diversos tipos de famílias, também deveríamos, no mínimo reconhecer que o ciclo pelos quais elas passam também pode ser diferente” (Molina-Loza, 1998, p. 69). Na medida que há uma complexificação dos modos de vida devido a vários estresses, como o desemprego e a exclusão, Andolfi e Nichilo (1991, p. 11) consideram que a retomada das gerações anteriores, conforme proposto por Bowen, encontra uma variável não prevista por ele – o tempo – quando os valores das gerações anteriores não são mais compreendidos pelas gerações atuais.

Assim, compreender o limite da teoria de diferenciação do self passa pela compreensão da forma como as famílias estão estruturadas nos dias atuais.

Exporemos, a seguir, o estudo de caso a partir do qual os conceitos acima expostos serão apresentados e elaborados.

1 Dissertação apresentada à Universidade Católica do Salvador, em 2005, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Família na Sociedade Contemporânea. Orientação de Elaine Pedreira Rabinovich. Co-orientação de Célia Nunes Silva.
2 COFAM - Pertencente ao Movimento Familiar Cristão (MFC) de Salvador-BA, onde funciona o Curso de Especialização e Formação em Terapia de Família da Universidade Católica do Salvador (UCSAL).

Elizabeth Medeiros de Almeida Martins, Assistente Social, Docente da Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Endereço eletrônico: elizabeth.martins@hotmail.com
Elaine Pedreira Rabinovich, Docente da Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Endereço para correspondência: Rua Maranhão, 101. CEP 01240-001 - São Paulo-SP. Endereço eletrônico: elainepr@clas.com.br
Célia Nunes Silva, Médica, especilaista em terapia familiar. Docente da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Católica do Salvador. Endereço eletrônico: celianunessilva@yahoo.com.br


Postado Por Cintia Liana