"Uma criança é como o cristal e como a cera. Qualquer choque, por mais brando, a abala e comove, e a faz vibrar de molécula em molécula, de átomo em átomo; e qualquer impressão, boa ou má, nela se grava de modo profundo e indelével." (Olavo Bilac)

"Un bambino è come il cristallo e come la cera. Qualsiasi shock, per quanto morbido sia
lo scuote e lo smuove, vibra di molecola in molecola, di atomo in atomo, e qualsiasi impressione,
buona o cattiva, si registra in lui in modo profondo e indelebile." (Olavo Bilac, giornalista e poeta brasiliano)

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domingo, 15 de novembro de 2015

O silêncio dos inocentes

Jornal O Globo
Por Sávio Bittencourt
São milhares. Não gritam. Não fazem rebelião. Não fecham ruas em protesto. Não incendeiam ônibus. Não põem fogo em colchão. Não cometeram crimes. Ao contrário, são vítimas do abandono, de descaso, do desamor. Mas, apesar disso, estão sendo criadas em cativeiros mal disfarçados, escondidos de todos, varridos para debaixo do tapete. Quando acordam de um pesadelo, de madrugada, não têm a quem abraçar, um peito amigo para refúgio seguro. E são crianças. Somente crianças.
A institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil é uma prática desumana e ilegal. A própria Constituição da República, no seu art. 227, garante o direito à convivência familiar e comunitária e atribui ao Estado, à sociedade e à família o dever de garantir este e outros direitos fundamentais. Contudo, apesar da clareza do texto constitucional e da abundância de estudos na área da psicologia que mostram os enormes malefícios causados pela inexistência de uma vida familiar para a criança, ainda se admite que ela entre em tenra idade numa instituição e lá permaneça anos a fio. Por quê?
Há quem atribua o abandono exclusivamente à questão da pobreza. E aqui estamos diante da primeira incompreensão do fenômeno. Dos milhões de brasileiros que vivem na pobreza a quantidade de pais que abandonam efetivamente seus filhos em instituições é muito pequena, ínfima, se comparada com os que, diante das maiores dificuldades e vencendo grandes desafios, mantém seus filhos consigo e com eles convivem amorosamente. Nos casos de abrigamento a pobreza quase nunca é apontada com causa única, sendo sempre o pano de fundo para a violência e a negligência covardemente praticadas contra a criança.
O problema maior, causador da institucionalização e da demora exagerada da solução para a situação absurda de abandono da criança, tem nome: demagogia. Consagrou-se para as famílias biológicas o direito de institucionalizar a criança, mesmo que isso represente, a toda evidência, um prejuízo descomunal para aquela que deveria ser a mais protegida das criaturas. Inverteu-se o mandamento da Constituição: a família deposita a criança na instituição, como se coisa fosse, começam os esforços para a reintegração familiar, a inserção de adultos em tratamentos muitas vezes de improvável sucesso, e a criança fica anos esperando. Sem direito a um olhar especial, de pessoa que ama, que cuida, que se importa.

A proposta que se faz aos Promotores de Justiça e Juízes de Direito, é que a criança seja emancipada de sua situação de objeto, para ser realmente tratada como o principal sujeito de direitos das relações que vivencia. Quando uma criança é institucionalizada só pode haver duas soluções: ou volta para a família de origem em curto prazo ou é colocada em família substituta, devidamente preparada para amá-la concretamente. Preferencialmente através da adoção, que dará a ela todas as garantias da filiação, segura, igualitária e para sempre. Existe coragem para isso? Há que se ter.
Por Sávio Bittencourt
Publicado no Jornal O Globo

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Prioridade Absolutinha

Google Imagens

Por Sávio Bittencourt
 
Todo livro que trata dos Direitos da Infância e Adolescência, em alguma parte, revela e enaltece o Princípio Constitucional da Prioridade Absoluta dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Todo palestrante deste mesmo tema inicia sua fala com voz empostada ao declará-lo. Lembram-nos sempre que tal expressão “ABSOLUTA PRIORIDADE” só foi escrita uma única vez em TODA a Constituição: justamente para assegurar que o direito de crianças e adolescentes fosse, dentre os assuntos graves e importantes tratados pela Lei Maior, o mais proeminente. Este direito deve, por força do mandamento constitucional, ser atendido antes e mais profundamente que todos os demais, é o que se interpreta e se canta em verso e prosa. Muita prosa.

Pois bem. Lembro ao estimado leitor que a Constituição não é um mero protocolo de intenções, simpático, a ser implementado ao longo dos séculos vindouros, nem uma poesia utópica, fruto do diletantismo de sonhadores. Ela é uma norma concreta e cogente. Obriga Juízes e Legisladores. Obriga o cidadão e a sociedade. Condiciona as demais normas jurídicas: sua validade dependerá de serem elas compatíveis com o texto constitucional. Vincula, inclusive, a própria interpretação das leis, quando aplicadas aos casos concretos, pois esta aplicação deverá seguir seu espírito. Muito verso.

Portanto, em versos e prosa, temos a obrigatoriedade de todos os Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – de seguir a tal PRIORIDADE ABSOLUTA. A pergunta que se impõe é a seguinte: qual a razão desta prioridade não ser obedecida por nenhum destes poderes e por nenhuma das instituições que gravitam na órbita do Estado? Por que esta escandalosa omissão não é objeto de notícias na mídia? Por que não é o principal motivo das manifestações? A resposta é simples: porque as crianças violadas em seus direitos não têm dinheiro nem poder. Não influenciam, não patrocinam, não votam nem “dão votos”, não saem às ruas, não fazem rebeliões, não põem fogo em colchões.

Todos os interesses que provêm do poder político ou econômico têm atendimento com maior presteza e efetividade por parte dos Poderes constituídos. Interesses dos ruralistas, dos empresários, do consumidor (que ganhou poder político e de voto), dos que exercem mandatos, dos funcionários públicos, do trabalhador, todos, têm na estrutura dos Poderes formas mais formas de defesa. Tais interesses, justos ou não, são legislados, administrados e julgados com mais facilidade porque os Poderes lhes dão visível prioridade.

Assim, a PRIORIDADE ABSOLUTA da Constituição acaba por se transformar numa prioridadezinha, ou uma prioridade absolutinha: vale como retórica cínica de quem nada pretende mudar, de quem quer fazer demagogia tosca, de quem adora se mostrar militante mas gosta mesmo de fazer o jogo dos que estão no poder. Fica então isto dito assim, deste jeito, em prosa e sem verso, para que se saiba que havia quem se indignasse com tal iniquidade.
 
Sávio Bittencourt
(grifos meus)