Foto. Elena Kalis
Por Guilherme Lima Moura
Uma tragédia sem precedentes na história e na alma brasileira. O terrível episódio ocorrido recentemente na escola do Rio de Janeiro traz-nos a todos, imediatamente, um forte sentimento de consternação e compaixão pelo sofrimento de tantos. Nota-se, porém, que um evento como este produz, além de comoção, uma desenfreada busca por explicações e, quase sempre, por culpados. Diante dele, intensificamos nosso raciocínio e construímos nosso discurso com base na expressão linguístico-lógica mais representativa da razão humana: “é por causa de”. Usamos esta sentença para exercer nossa mais intrínseca e distintiva condição humana: a possibilidade de entendermos nós mesmos e o mundo. Não obstante, nem sempre produzimos este exercício de entendimento adequadamente. É quando explicações apressadas surgem aqui e ali; associações de causa e efeito infundadas são precipitadas a esmo; preconceitos infelizes são disseminados. Passa a existir, a partir de então, uma tragédia dentro da outra. A silenciosa tragédia do preconceito. É o que tem ocorrido quase subliminarmente, embora insistentemente, na descrição apresentada na mídia sobre o infeliz autor da tragédia de Realengo: “ele é filho adotivo”. A ênfase dada à condição de filho por adoção, em meio a tantas outras que poderiam ser informadas, deixa no ar um “é por causa de” que sugere a associação entre a filiação adotiva e a criminalidade, os distúrbios psicóticos, a maldade. Na esteira do preconceito, propagam-se nos círculos de convivência por todo canto esta infeliz e infundada conclusão. Filhos e pais adotivos e, sobretudo, candidatos a pais adotivos escutam admoestações pseudo-amigas: “Tá vendo?! Ele é adotado!”, vivenciando constrangimentos lamentáveis. Mas por que tal conclusão é infundada? Por que ela representa um mau uso do “é por causa de”? Porque não possui base racional em nenhuma dimensão lógica ou científica. Porque não se fundamenta em evidência estatística alguma. Porque fere mesmo o senso comum e o bom senso. Tal associação causal entre a especificidade do “fazer-se filho” e o ato criminoso não resiste à lógica. Torna-se preciso aprofundar a reflexão em busca de explicações cabíveis, evitando-se a preguiçosa prática da definição preconceituosa. Se fizermos um levantamento entre malfeitores de todos os tipos, certamente encontraremos poucos casos de adoção, por uma questão estatística: a filiação biológica tradicional corresponde à esmagadora maioria dos casos de filiação. Mas se mudarmos nossa busca e investigarmos quantos daqueles criminosos sofreram algum tipo de abandono afetivo, certamente chegaremos a números assombrosos, embora não surpreendentes. A atitude adotiva consiste no estabelecimento de uma relação de profundo afeto, que inclui o outro na relação como ele se apresenta. Que respeita a diversidade e não se prende a estereótipos e preconceitos. É justamente no abandono afetivo (ocorra ele entre pais e filhos biológicos ou adotivos, ou nos hoje famosos casos de bullying nas escolas) que residem muitas das causas das aflições humanas. O abandono afetivo é a mais cruel forma de relacionar-se com o outro. Pensemos nisso antes de buscarmos explicações para os fatos que nos assombram: em que níveis de falta de adoção, ou seja, de abandono afetivo estamos construindo nossas relações sociais? Eis um “é por causa de” que a vale a pena considerarmos...
*Guilherme Lima Moura é professor da UFPE, pai adotivo e integrante do Grupo de Estudos e Apoio à Adoção do Recife (GEAD-Recife).
Postado Por Cintia Liana
Nenhum comentário:
Postar um comentário