"Uma criança é como o cristal e como a cera. Qualquer choque, por mais brando, a abala e comove, e a faz vibrar de molécula em molécula, de átomo em átomo; e qualquer impressão, boa ou má, nela se grava de modo profundo e indelével." (Olavo Bilac)

"Un bambino è come il cristallo e come la cera. Qualsiasi shock, per quanto morbido sia
lo scuote e lo smuove, vibra di molecola in molecola, di atomo in atomo, e qualsiasi impressione,
buona o cattiva, si registra in lui in modo profondo e indelebile." (Olavo Bilac, giornalista e poeta brasiliano)

segunda-feira, 25 de abril de 2016

As crianças excluídas. Revista E, SESC São Paulo

Meu artigo inédito na Revista "E", do SESC São Paulo, sobre adoção no Brasil.
Em primeira mão para vocês.

Cintia Liana na Revista 'E", SESC São Paulo

 Cintia Liana na Revista 'E", SESC São Paulo




Artigo inédito da psicóloga Cintia Liana Reis de Silva 
para a Revista "E", do SESC São Paulo

"As crianças excluídas"
Por Cintia Liana Reis de Silva

Adoção é uma palavra quem vem do latim adoptare, que significa acolher, cuidar, considerar. É uma das palavras mais bonitas e mais ricas de conteúdo interpretativo do dicionário. A adoção é uma atitude instintiva e complexa, plena de requinte humano e espiritual, onde se acolhe aquele que não veio de você, mas veio para você.

Sou psicóloga e trabalho com adoção de menores desde 2002 e tenho observado que as discussões avançam, aprofundam-se, combatem tabus e educam os mais preconceituosos. E isso se dá graças ao empenho das famílias adotivas, aos grupos de apoio à adoção, a alguns meios de comunicação que tratam do tema de modo responsável e aos militantes brasileiros, que vêm enfrentando desafios, levantando bandeiras, conscientizando a população e não desistem da luta pelas crianças abandonadas por suas famílias.

Mesmo com todas as dificuldades, eu tenho orgulho do meu país, o Brasil. Eu trabalho na Itália desde 2010 e enquanto aqui se discute a aprovação da união civil entre pessoas do mesmo sexo, no Brasil algumas já adotam. Enquanto aqui só os casais heterossexuais casados com no mínimo 3 anos de convivência comprovada podem adotar, no Brasil os solteiros também podem. Aqui na Itália a adoção é tão burocrática que os casais acabam decidindo realizar uma adoção internacional, que é custosa, quase igualmente lenta e trabalhosa.

O nosso Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA é um dos mais avançados do mundo, entretanto falta aplicar o que está escrito. Há pessoas trabalhando muito para isso, também sabemos que o contingente de pessoal é absolutamente insuficiente para um trabalho de excelência. 

Procurando facilitar o cruzamento de dados entre adotantes e crianças à espera pela adoção, foi criado em 2008 o Cadastro Nacional de Adoção, o chamado CNA, que após 6 anos de sua implementação ainda não funciona como se deve. Em 12 de maio de 2015, a nova versão, chamada de Novo CNA, foi elaborada pela Corregedoria Nacional de Justiça e, embora esse sistema seja uma ferramenta de extrema importância, ele não funciona com eficiência razoável, e o novo CNA trouxe ainda mais problemas e falhas, sem ter solucionado as deficiências do antigo.

Uma das mudanças foi que na prática se passou a encontrar "crianças para pais, o que fere diretamente os interesses da crianças e vai de encontro ao que preconiza o ECA, pois a lei é inversa, devemos encontrar "pais para uma criança". Do contrário coloca-se em risco o princípio da absoluta prioridade dos direitos da criança e do adolescente.

Embora pareça que a dificuldade em concretizar uma adoção esteja somente relacionada à morosidade da Justiça e às burocracias, Karina Machado Rocha Gurgel, servidora da VIJ-DF e mestre em Psicologia, desconstrói esse mito em seu artigo “A realidade sobre a espera pela adoção: a diferença entre o perfil desejado pelos pais adotantes e as crianças disponíveis para serem adotadas”. "Com base em dados coletados do Cadastro de Adoção do Distrito Federal, Karina demonstra que o perfil pleiteado pelos requerentes é inversamente proporcional ao perfil das crianças cadastradas para adoção, uma vez que mais de 90% das famílias preferem crianças de 0 a 3 anos, que correspondem a pouco mais de 8% das cadastradas. Destaca, ainda, que, em âmbito nacional, a situação é semelhante. (Site TJDFT, 2016)

Num artigo no jornal italiano "La Repubblica", em 19 de dezembro de 2012, o presidente da Ai.Bi. - Associazione Amici dei Bambini, Marco Griffini, explica que são 168 milhões de crianças abandonadas em todo o mundo e para entender esse número, "é necessário imaginar colocar em fila indiana, bem pertinho uma da outra: a linha humana que formam dá uma volta no mundo, é longa como a circunferência da Terra".

Não quero causar desconforto, mas é necessário que todos se imaginem quando pequenos e/ou os seus filhos, numa instituição, sozinhos, sendo cuidados por pessoas que eles não conhecem, sem vínculos afetivos parentais clássicos, tendo um contato escasso com o mundo externo, com a convivência diária com autoridades que podem ser punitivas, rotina impessoal, ordem, submissão, silêncio, colegas abusivos, falta de autonomia, etc. As crianças órfãs em todo o mundo vivem uma realidade de desamparo e sofrimento psicológico ao último grau. Imaginem essas crianças gritando e pedindo a nossa ajuda. Não se resolveu ainda o futuro delas porque passa pela tarefa de olhar para as nossas próprias fragilidades, para a nossa criança ferida interna, passa pela necessidade de sentir aquele desconforto no estômago. Mas não é virando as costas fugindo da responsabilidade - para que não nos sintamos culpados em algum nível - é que vamos modificar essa realidade. É mergulhando em nossa essência, tocando em nossa humanidade e reconhecendo a necessidade de mudar. A tarefa é de todos.

Em meu livro "Filhos da Esperança, os caminhos da adoção e da família e seus aspectos psicológicos" (2012, 2ª ed.) eu explico, entre outras coisas, porque todas as crianças são "adotáveis" e como se preparar para a adoção. Se não deve existir um modelo de família ideal para adotar, então porque achar que deve ter um perfil de criança ideal para adoção? Seria cruel. Se espera por um bebê que ainda será abandonado ou por uma criança que já está precisando nesse exato momento de pai e/ou mãe? Por que não pensar nelas agora? Nas crianças reais? Todos nós merecemos ser amados, tendo resistências e dificuldades emocionais ou não. Quem não tem seus traumas e más lembranças infantis? Alguns adotantes fecham um determinado perfil, uma criança de até 2 anos, parecida com eles, saudável, mas seguramente se eles não forem tão rígidos e exigentes e conhecerem uma, duas ou três crianças, fora daquele perfil idealizado e determinado, poderiam se "apaixonar" por elas. Além de esperar muito menos tempo na fila, e entrar nela uma só vez para ter mais de um filho, a adaptação poderia ser tão boa quanto com uma criança menorzinha, porque mais que a idade, tem que existir identificação, empatia e isso pode ser com qualquer uma, é só estar receptivo para esse encontro. Elas também já sabem o que é adoção e a desejam. Ademais, adotando crianças fisicamente diferentes, com uma etnia diversa, eles estariam enfrentando o preconceito, ao invés de se "esconderem" atrás de uma "falsa semelhança", para que a adoção não pareça tão evidente. Trabalhar os próprios preconceitos e das pessoas ao nosso redor é o primeiro passo para isso. Adote a verdade, que adotar crianças mais crescidas e irmãos não é sempre mais difícil. As adoções difíceis são aquelas feitas por adotantes muito exigentes, inseguros, imaturos, que não dão tempo à criança de se adaptar, não a aceitam e não a entendem, que demonstram uma postura ameaçadora de um possível novo abandono ou pode se tornar difícil pela complexidade das circunstâncias, mas tem sempre um grande aprendizado 

Para acontecer uma adoção é preciso o desejo de amar e fazer dar certo, sem falsas expectativas. A vida de cada um é guiada e limitada pelas crenças ocultas. Investir no autoconhecimento e trabalhar os modelos familiares intergeracionais adoecidos faz parte da preparação. leia mais, pesquise. Em meu blog www.psicologiaeadocao.blogspot.com tem dezenas de textos meus e outros mais sobre adoção e psicologia de família.

Educar e cuidar de um filho é trabalhoso, seja biológico ou adotivo, mas o que faz tudo valer a pena é o amor, a capacidade de ver o lado encantador e mágico, de entender essa dialética, de ver a riqueza desse aprendizado. Quem conhece o amor deve ser capaz de educar os filhos e o mundo aos seu redor e só esse amor pode salvar tudo. Reafirmando um trecho de uma de minhas frases, "amar se aprende".



Revista E, SESC São Paulo

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