Cacau Waller
Por Leilane Menezes
Publicação: 21/08/2011
"Ele, mesmo sofrendo, era feliz. E, de alguma maneira, me dizia que eu também podia experimentar amor e felicidade", Benedito Fernandes Pinto, sobre o filho adotivo, João Paulo.
O menino descabelado e ofegante superou as dificuldades físicas e correu em direção ao homem de jaleco branco, no corredor do hospital. Abraçou as pernas do doutor como se o conhecesse de longa data. Nunca haviam se visto antes. Mesmo assim, de imediato, reconheceram-se. O pequeno paciente, como quem encontra água no deserto, chamou o atencioso médico de pai. Assim, sem explicação. Os dois, mesmo sem saber, iniciaram naquele momento uma relação para a vida toda.
A criança é João Paulo. Aparentava ter 1 ou 2 anos quando o internaram pela primeira vez. Havia sido, como todos acreditavam, a princípio, abandonado em Taguatinga pela família. Foi parar no Hospital Universitário de Brasília (HUB), com severos problemas de má-formação do intestino. Ali, em um corredor de 20 metros de extensão, passou os primeiros meses de vida na companhia de voluntários e especialistas em saúde. No mesmo local, saiu da situação de abandono e viu o rumo da vida mudar.
O médico agarrado pelo menino é Benedito Fernandes Pinto, à época com 64 anos, morador da Asa Norte, quatro filhos adultos e divorciado. O encontro entre os dois personagens tão diferentes dessa história real era improvável, mas ocorreu. Depois disso, doutor Benedito tornou-se o pai adotivo de seu paciente João Paulo. A adoção, porém, não ocorreu de imediato.
Foram necessários meses até que Benedito compreendesse que a ligação entre ele e João Paulo era definitiva. “Eu tinha mais de 60 anos, um marca-passo no peito e morava sozinho. Adotar não passava pela minha cabeça”, lembrou. Benedito e João se conheceram quando uma voluntária do HUB convidou o médico — que, além de trabalhar no local há mais de 40 anos como ginecologista, é voluntário em outras áreas — para “dar uma olhada” em João Paulo.
Benedito já havia se acostumado às mazelas humanas. Ainda assim, comoveu-se com a imagem sofrida, porém forte, de João Paulo. “Fui tocado pelo olhar dele, que me convidava a uma grande e surpreendente viagem. Ele me transmitia: ‘Olhe bem nos meus olhos, olhe forte e veja. Eu tenho um problema, mas não sou um problema’. Nele eu vi tolerância, generosidade, solidariedade e compaixão. Ele, mesmo sofrendo, era feliz. E, de alguma maneira, me dizia que eu também podia experimentar amor e felicidade.”
Admiração
O médico não encarou a situação com pena, nem viu nela uma maneira de fazer caridade. “Eu só pensei que aquele menino tão resistente, que sobreviveu mesmo quando tudo dava errado para ele, precisava de uma oportunidade. Ele era admirável.” Durante três anos, João Paulo continuou no hospital. Enquanto o processo pela guarda do menino corria, Benedito podia levá-lo para passear no Zoológico e no Jardim Botânico, por exemplo. Matriculou-o em uma escola particular, que João frequentava, mesmo internado.
João chegou a morar em um abrigo mantido por uma organização não governamental (ONG). Lá, podia ser visitado pelo doutor. Tinha também uma “mãe social”, uma mulher eleita pela ONG para desempenhar o papel materno. Somente quando o garoto completou 4 anos, passou a morar de vez com Benedito. “João Paulo não veio morar comigo, eu é que fui viver com ele e para ele”, ressaltou o médico. A mãe social, nos primeiros anos, morou com os dois, na Asa Norte.
Histórico
Quando decidiu adotar João Paulo, Benedito procurou conhecer as raízes do menino, a família biológica dele. Antes disso, já descobrira que os pais de João não haviam abandonado o menino por falta de amor, como se acreditava no início. Em um dia de desespero, o pai biológico de João, um homem simples e analfabeto, enrolou a criança nascida doente em uma manta. Saiu da pequena comunidade de Riacho da Serra Branca, na Bahia, rumo a Brasília, em uma ambulância emprestada pela prefeitura de outro estado, à procura de tratamento para o filho.
Chegando aqui, o pai se assustou com a cidade grande. “Eles não tinham como se sustentar. Iam ficar na rua. O pai deixou o filho no hospital e transferiu para o Estado a responsabilidade sobre ele. Mas deixou a Certidão de Nascimento e contatos da família. Hoje, vejo que foi um ato corajoso de amor para salvá-lo”, analisa Benedito. Os pais de João não se opuseram à adoção. O médico viajou até a Bahia, quis conhecer a família do menino. Chegando lá, lembrou-se da própria infância, em Minas Gerais.
“Eles viviam em uma cabana de palha, em uma situação crítica. Não teriam condições de cuidar de João Paulo. Lembrei-me de quando eu era criança e morava em um lugar parecido. Meus pais eram trabalhadores rurais. Trabalhei desde pequeno. Depois, fui porteiro de hotel e muito mais. Só assim, consegui me formar médico”, contou, emocionado.
A partir daí, Benedito se identificou ainda mais com João Paulo. Quando o menino completou 10 anos, foi levado para a Bahia, de volta às suas origens, mas somente a passeio. Hoje, João tem 15 anos. Cresceu saudável. Está no 8º ano da escola. Com a ajuda de professores e acompanhamento adequado, conseguiu se desenvolver. O adolescente é grato ao pai adotivo. “Sempre penso: ainda bem que a gente se encontrou. Quero crescer, ter filhos e ser um pai como ele é para mim”, afirmou.
Benedito e João Paulo deram lar um ao outro. Quando criou os filhos biológicos, o médico trabalhava 18 horas por dia. Ofereceu-lhes conforto, estudos, viagens e amor. Mas somente hoje o doutor diz compreender inteiramente o papel de um pai. “João Paulo me ensinou que existem necessidades mais subjetivas. Com ele, eu reparei os meus erros.”
Benedito usa uma história atribuída ao pintor Michelangelo para explicar a relação construída com João Paulo. “Contam que Michelangelo, ao ser questionado sobre como esculpiu a Pietà (imagem da Virgem Maria com Jesus morto nos braços), respondeu: ‘Nada especial. Ela estava em um bloco de mármore, eu só fiz desbastá-lo e ela se revelou’. Assim é meu papel com meu filho: criar oportunidades para que ele se revele. Em pouco tempo, me dei conta de que João também me esculpia. Hoje, decididamente, não sou a mesma pessoa de antes”, revela.
Postado Por Cintia Liana
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