RESUMO Donald Woods Winnicott, cujo 120º aniversário se celebrou em abril, é tido por muitos como o principal psicanalista depois de Freud. Ainda que o pai da teoria edípica tenha servido de referência para seu trabalho, o psiquiatra britânico formulou conceitos próprios e abriu caminho para uma "revolução" psicanalítica.
Donald Woods Winnicott (1896-1971)
Zeljko Loparic
08.05.2016
No mês passado, celebraram-se os 120 anos do nascimento
de Donald Woods Winnicott, considerado por muitos o mais importante
psicanalista depois de Freud. Por quê? Porque ele refundou a psicanálise
freudiana.
No esboço de um artigo de 1971, ano de sua morte,
Winnicott escreveu: "O que pleiteio é um tipo de revolução em nosso
trabalho. Vamos reexaminar o que fazemos". O que fazem os psicanalistas
freudianos? Decifram o inconsciente reprimido que incomoda.
Os freudianos curam pela palavra, pela análise do
discurso do paciente. Com a cura pela palavra, no entanto, as análises não
terminam. A falta de eficácia das análises comuns se deve ao desconhecimento da
existência de dissociações muito primitivas descobertas por Winnicott,
escondidas atrás dos conflitos do inconsciente reprimido. A revolução
conclamada já teria, portanto, acontecido, e consistiria em suas próprias
contribuições à psicanálise.
Formado como médico pediatra e tendo observado problemas
emocionais em bebês de poucas semanas, Winnicott tornou-se psiquiatra infantil
e recorreu à psicanálise freudiana. Começou a modificar a psicanálise quando
constatou que algo estava errado com o modelo edípico, criado e usado para
tratar as neuroses dos adultos.
As mudanças decisivas foram motivadas pelo que Winnicott
apreendeu das análises de psicóticos adultos, que precisaram regredir à
situação de dependência: retornar aos estágios e processos muito primitivos da
vida, idênticos, entendia Winnicott, aos vividos pelos bebês humanos.
AMADURECIMENTO
Quais são as principais reformulações? Substituição do
Édipo, andarilho na cama da mãe, como modelo de problemas psicanalíticos, por
outro – o do bebê no colo da mãe; teoria do processo de amadurecimento
(crescimento, desenvolvimento, integração) mediante a qual indivíduos se
transformam de bebês dependentes em pessoas inteiras capazes de vida própria;
teoria da natureza humana; a psicopatologia winnicottiana, que é uma teoria das
interrupções do processo de amadurecimento; teoria dos procedimentos clínicos
para auxiliar indivíduos a retomar o processo de amadurecimento interrompido e
a conquistar a unidade pessoal; teoria da experiência cultural. Vejamos.
Para Freud, da situação edípica surge o complexo nuclear,
que estaria na origem não só da estruturação da personalidade mas de todos os
problemas psicanalíticos (neuroses) e mesmo da ordem social e da cultura.
Segundo Winnicott, as bases da personalidade são lançadas com o bebê ainda no
colo da mãe, formando, na experiência inicial com ela, as bases de toda sua
capacidade futura de se relacionar; os fracassos respectivos respondem pela
estrutura básica de todas as dificuldades emocionais da vida humana.
Em Freud, a teoria da sexualidade é o carro-chefe para o
estudo e o tratamento das neuroses. Em Winnicott, papel semelhante cabe à
teoria do amadurecimento, espinha dorsal de seu ideário, usada no estudo e
tratamento de todos os problemas maturacionais do existir humano, a natureza
específica destes sendo modulada pelo seu ponto de origem na linha do
amadurecimento.
Freud estuda o homem em termos de processos mentais,
conscientes e inconscientes. Winnicott vê o homem como manifestação da natureza
humana no tempo, caracterizada pela tendência à integração que só se realiza
num ambiente facilitador (o colo da mãe, a família, o grupo social). Viver
significa alcançar e manter a continuidade de ser no mundo.
Na sua psicopatologia, Freud parte das lacunas na
corrente da consciência composta de conteúdos afetivos e representacionais de caráter
sexual, que resultam da repressão; codificados e guardados na parte inacessível
do aparelho, esses conteúdos forçam o retorno à consciência como sintomas,
desordens adicionais dolorosas da vida consciente.
Na psicopatologia de Winnicott, os distúrbios não são
gerados pela expulsão, para fora da consciência, daquilo que aconteceu, mas não
deveria, e sim por aquilo que não aconteceu, embora precisasse acontecer. Os
distúrbios são interrupções na continuidade do ser, cuja origem está nas falhas
ambientais e nas reações do bebê a essas falhas, que acabam constituindo
organizações defensivas mais ou menos rígidas.
Freud propõe a "talking cure", técnica que,
mediante livre associação e interpretação, conecta os sintomas com os conteúdos
inconscientes reprimidos, resgatando-os, assim, para a memória consciente. Uma
vez que as instâncias repressivas estão sempre lá, a permanente censura de
desejos cria novos distúrbios, de modo que o tratamento, em princípio, nunca
chega ao fim.
Além de usar a cura pela palavra numa versão modificada,
Winnicott defende e pratica um tratamento inteiramente novo: a
"care-cure", cura pelo cuidado.
Quando a continuidade de ser foi interrompida pela falha
ambiental, a tendência à integração desenvolve uma força poderosa para reiniciar
a integração rumo à saúde. O analista precisa estar disposto a oferecer ao
paciente o que este necessita para tanto – a começar, às vezes, pela etapa mais
primitiva. Ele não é um decifrador, mas alguém que participa ativamente, pelo
seu comportamento, da retomada do amadurecimento por seu paciente.
O tratamento consiste em facilitar a busca pelo paciente,
aqui e agora, da integração não alcançada no passado. O analista só poderá
proceder assim se acreditar na natureza humana e na tendência à integração que
a caracteriza.
Em Freud, a ordem social e a cultura são produtos da
sublimação, processo pelo qual os indivíduos e sociedades inteiras buscam
resolver seus inevitáveis conflitos sexuais de caráter edípico, marcados pela
ameaça da castração do filho por parte do pai e, como reação, pelo assassinato
do pai pelos filhos revoltados, acometidos posteriormente de culpa.
A culpa torna-se o motor do processo cultural,
basicamente o mesmo das neuroses. Sendo assim, as formas da vida social
(família, grupos sociais, igrejas, povos) e da cultura humana, mesmo as mais
elevadas (a moral da lei, as religiões monoteístas, as artes) possuem as mesmas
propriedades que as neuroses individuais e coletivas. A família exogâmica,
favorecida pela sociedade, surge da proibição do incesto, terminando com isso o
drama do assassinato do pai. A moral freudiana, herdeira da moral da lei
kantiana, e o monoteísmo têm a mesma origem: a divinização compensatória do pai
e da vontade do pai.
DIGESTÃO
Em Winnicott, a ordem social, em particular a família,
emerge em larga medida das tendências rumo à organização em uma personalidade
individual. O pai, protegendo a mãe nos estágios iniciais do amadurecimento da
criança, possibilita a esta suportar a culpa de seu uso excitado da mãe e,
assim, ficar livre para amá-la instintivamente – sendo que os instintos, no
início, não são genitais, mas relacionados à digestão. A origem e o
funcionamento da família diz respeito à provisão ambiental da qual a criança
necessita para se integrar.
Os elementos básicos da moralidade também são adquiridos
antes das relações triangulares, que Freud chamou de edípicas, pois a criança
passa cedo a sentir-se compadecida pelos estragos que, nos estados excitados,
ela faz ou imagina fazer no corpo da sua mãe, que ela ama. Se esta sobrevive e
não retalia –o que ela é capaz de fazer se tem saúde e é auxiliada pelo pai ou
outras pessoas–, a criança descobre sua própria urgência para remendar e
contribuir.
Antes e independentemente de coerção externa, a criança
cria a capacidade de sentir-se culpada e de ser responsável por outras pessoas.
Essa é, em Winnicott, a origem da ética –decerto, não da ética da lei (e
certamente não a da lei da proibição do incesto), mas da ética do cuidado em
relação a outras pessoas e a sua continuidade do ser, que pode ser aproximada
do cuidado de si e dos outros, de Heidegger e de Foucault.
No que se refere à religião, suas várias formas
correspondem, de acordo com Winnicott, aos sucessivos estágios do processo de
amadurecimento. O monoteísmo em particular tem sua origem no estágio do
"eu sou", no qual se constitui a unidade pessoal. Nesse processo, o
pai, mais do que a mãe, é usado pela criança como esquema para a aquisição de
um si-mesmo unitário.
A atividade artística é a continuidade do brincar, que
começa muito cedo, já durante o estágio dos fenômenos transicionais (uso de
ursinhos, chupetas, pontas do lençol etc.). O brincar é inerentemente excitado
e precário, mas essas características não surgem da excitação instintual. Em
especial não é, como quer Freud, um resultado de sublimação da repressão que
resolve conflitos internos.
Diante do que apresentei, fica possível determinar com
precisão o lugar de Winnicott na história da psicanálise. Ele não é freudiano
(nem kleiniano, tampouco lacaniano); é o que se tornou ao viver sua vida e
fazer o seu trabalho clínico dedicado a ajudar outras pessoas a se tornarem,
elas também, indivíduos integrados, capazes de viver uma vida que valha a pena
de ser vivida e, finalmente, de dar-se ao luxo até de morrer. Provavelmente, no
caso do próprio Winnicott, de morrer tranquilo, pois a revolução à qual dedicou
sua vida estava lançada.
ZELJKO LOPARIC, 76, é professor
titular aposentado de filosofia da Unicamp e autor de "Winnicott e
Jung" (DWW).