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Por Lídia Weber
Breve reflexão sobre o abandono de crianças no Brasil
Em um país não muito distante, numa época de grande carestia, viviam um lenhador, seus dois filhos e a madrasta deles – muito malvada e sem coração, um jargão da representação das madrastas das histórias infantis. Chegou uma época em que o preço das coisas subiu demais, a comida foi acabando e a mulher teve a cruel idéia de diminuir os gastos abandonando João e Maria no meio da floresta. O pai ficou com o coração partido mas acabou concordando com a esposa.
Um dia de inverno de 1997 na cidade de Curitiba. Eram 6h30 quando uma moradora do bairro de Uberaba ouviu um som parecido com um choro de criança. Ao verificar no terreno baldio existente ao lado de sua casa, avistou um bebê recém-nascido junto a um monte de lixo.
Sofia é uma menina de 10 anos de idade e mora em orfanatos desde os dois anos. No seu prontuário consta que a sua mãe, que tinha mais três filhos, a deixou lá "somente por um tempo, até encontrar um emprego". Hoje Sofia tem o adjetivo de "institucionalizada", pois sua mãe nunca mais voltou para buscá-la. Ela não sabe responder porque está morando em um orfanato e não lembra nem de sua mãe nem de seus irmãos. Nesses oito anos, ela já morou em três instituições diferentes e nunca recebeu visita de ninguém. Quando lhe perguntamos qual era o seu maior desejo, o maior presente que ela poderia ganhar, Sofia respondeu: "Uma família". Depois de alguns segundos pensativa, ela completou: "eu queria alguém que me chamasse de filha, queria dormir numa cama aconchegante e ser feliz para sempre".
Três dramas humanos. Três histórias. Qual é a mais improvável? Sempre ouvimos dizer que a arte e a literatura representam a vida, e isso também ocorre, diretamente ou simbolicamente, em historietas infantis. Para compreendermos os determinantes das duas histórias verídicas, tão próximas do conto de fadas escrito pelos Irmãos Grimm no século passado, é preciso não esquecer da realidade brasileira. Não é possível analisar somente as variáveis psicológicas e emocionais da mãe que abandona, especialmente quando ela mora em um país onde boa parte da população pode ser considerada abandonada pelo Estado. Ainda assim, como é possível que uma mãe, que tenha carregado um filho em seu próprio corpo jogue-o no lixo ou deixe-o em uma instituição e nunca venha sequer visitá-lo? Como podemos definir "abandono"? Entrega, renúncia, desamparo? Uma mãe que entrega o seu filho para adoção é diferente daquela que joga o seu filho no lixo?
Essa é uma questão cuja resposta é extremamente complexa e é preciso tomar cuidado para não se julgar esta atitude somente como uma transgressão moral (Ariès, 1978 e Badinter, 1980) ou um distúrbio patológico (Martínez Ruiz & Paúl Ochotorena, 1993; Audusseau-Pouchard, 1997). Existe uma rede de determinantes, tais como as de nível sócio-econômico, estrutrais, psicossociais, culturais, entre outras. É preciso analisar não somente a mãe que abandona, mas as condições abandonantes de sua existência.
E as condições sociais do Brasil?... O Brasil está na 10ª posição em relação à economia internacional, mas, apesar do desenvolvimento econômico a sua estrutura social não sofreu evolução, fazendo com que se tornasse o campeão mundial da desigualdade. De acordo com dados do Banco Mundial, temos a pior concentração de renda do planeta, pois 10% dos mais ricos detém 54% da renda nacional; a concentração de terra ainda é maior do que a concentração de renda: a metade das terras está nas mãos de 2% dos proprietários. Os dados mostram que 59% da população são pobres e excluídos; existem 19 milhões de analfabetos no país; quase quatro milhões de crianças entre 5 e 14 anos trabalham (o que é proibido pela Constituição), geralmente num processo de exploração de mão de obra barata, e deixam de conhecer a infância e, estamos em segundo lugar no mundo em relação à prostituição infantil, que geralmente passa de mãe para filha, num processo de escravidão virtual.
O que pode levar uma mãe a chegar ao ponto de desistir de um filho e deixá-lo em um terreno baldio? A questão não é simples: exclusão, impossibilidade de abortar legalmente, incredulidade em relação às autoridades competentes que poderiam levá-la a entregar o filho nos Juizados da Infância e da Juventude, medo, ausência de amor, falta de estrutura familiar, desespero... Como nesses casos, a mãe dificilmente é localizada, torna-se impossível traçar seu perfil, mas é possível traçar um paralelo com o perfil das mães que doam o seu bebê para adoção: solteira, mais de 20 anos, educação primária incompleta, trabalha esporadicamente como empregada doméstica e não conta com o apoio da família extensa. Geralmente ela engravida em uma relação eventual e, na maior parte dos casos, essa mãe doadora já teve outros filhos, que também foram doados ou estão em instituições.
Talvez a organização psíquica de uma mãe que não vê perspectivas em melhorar de vida e que não tem espaço nem para o sofrimento, comece a desmoronar. Essa mãe que a todo momento está recebendo claras mensagens sociais de que ela não tem como sair do seu estado de miséria, cujas necessidades básicas e direitos como cidadã estão fora do seu alcance e que está sob uma doutrina de dominação, tem grande probabilidade de fazer coisas violentas e primitivas. É uma perpetuação de um ciclo cruel: o abandonado abandona. Não lhe foram proporcionadas chances de construir vínculos sócio-afetivos em sua existência.
O abandono de crianças nos orfanatos é um tragédia de igual proporção. A princípio, a institucionalização foi criada com o objetivo de "proteger a infância", mas o que tal medida consegue de fato é somente a segregação/exclusão de "produtos sociais indesejáveis. Estimativas não oficiais indicam que cerca de um milhão de crianças estão sendo atendidas por instituições, eufemisticamente chamadas de Unidades de Abrigo, sendo a maioria mantida por entidades religiosas. Na primeira pesquisa (Weber e Kossobudzki, 1996) realizada com a totalidade das crianças e adolescentes de um Estado do país (Paraná) os dados revelaram que a maioria absoluta dos internos (64%) têm entre 7 e 17 anos e o que menos há nesses orfanatos são crianças órfãs. Somente 5% são órfãs bilaterais e somente 14% das crianças vieram de um lar onde o pai e a mãe estavam vivendo juntos. O restante dos internos provém de famílias monoparentais, chefiadas por mulheres (a maior parte foi abandonada pelo marido e outra parte refere-se à mães solteiras). Assim como na história de João e Maria, a crise do abandono nos orfanatos é desencadeada, primordialmente por "falta de recursos financeiros". Assim como no conto de fadas existe a bela casa da bruxa, na vida real as crianças vão para instituições e recebem cama e comida. No caso da história infantil, a bruxa quer devorar as crianças. No caso da realidade, a própria vida encarrega-se disso.
A princípio o internamento é colocado como uma medida a curto prazo. No entanto, como a existência de outros meios que auxiliem estas famílias a manter os filhos junto de si são ainda incipientes, a prática da institucionalização tem se mostrado um incentivo ao abandono. Crianças e adolescentes institucionalizados, que estavam há mais de um ano sem receber visitas de sua família, foram entrevistados (Weber, 1996) e verificou-se que cerca de 70% deles nunca receberam visitas e, os outros 30%, receberam algumas visitas no início, mas elas cessaram por completo. Geralmente a família desaparece para não ser encontrada pelo Serviço Social. Ainda existe outra tragédia na vida dessas crianças: o descaso das autoridades competentes (Instituições de Abrigo, poder Judiciário e Promotoria Pública) em relação à tutela dessas crianças. Supõem-se que se não foi possível um retorno à sua família de origem, se elas estão abandonadas, então podem ser colocadas para a adoção, certo? Errado. Apesar de estarem esquecidas nas instituições, de não receberem visitas de sua família e do seu maior desejo configurar-se na adoção, somente 8% dos pais dessas crianças foram destituídos do pátrio poder e somente elas estão legalmente disponíveis para adoção. As outras crianças, que nunca sequer receberam uma visita de suas famílias, não são consideradas oficialmente "abandonadas", pois seus pais ainda detém o pátrio poder. Poderiam ser classificadas como "esquecidas", "filhos de ninguém", "filhos do Estado" ou alguma outra expressão que possa defina a falta de compreensão sobre o desenvolvimento infantil, a lentidão burocrática e o desapreço dos poderes constituídos.
O Brasil, apesar de ter sido o último país a acabar com a escravidão e com a Roda dos Enjeitados foi o primeiro país a criar uma lei específica para crianças e adolescentes após a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança em 1989. Em 1990 foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, um dos mecanismos mais avançados do mundo de proteção à infância, fruto de uma grande mobilização da sociedade civil. No entanto, percebe-se que não basta haver leis se os mecanismos sociais que produzem as tragédias não são modificados. Na história de João e Maria, os dois irmãos conseguiram escapar da instituição, digo, da enganosa casa da bruxa, voltaram para casa e para seu pai (a madrastra havia morrido). O bebê encontrado no terreno baldio foi levado a um hospital, está fora de perigo e existem muitos candidatos à sua adoção. A menina Sofia continua na casa da bruxa, digo, na instituição. Ela é considerada uma "criança inadotável" aqui no Brasil. Ela, como Pandora, tem sempre esperança...
Para haver mudanças significativas, é preciso uma conscientização social para um compromisso verdadeiro, e não virtual, de todos os segmentos da população. E o psicólogo deve fazer parte deste compromisso. E mais ainda. O compromisso do psicólogo não deve ser apenas de natureza assistencialista ou paternalista. A sua participação deve ser em ajudar a promover esta consciência social frente à exclusão. Não adianta somente revoltar-se, ou como ressalta Jabor (1997), dizer que a injustiça é sempre feita pelos "outros" e sentir-se salvo por ter-se indignado e esquecer o assunto. Todos os "excluídos" querem ser constantemente lembrados. É preciso falar deles, pensar neles, e procurar encontrar meios de engajamento, principalmente quando se fala de crianças. Denunciar as injustiças e repensar a miséria e a tragédia cotidiana dessas crianças é uma reivindicação dos direitos da infância, mas também e simplesmente o direito à infância. Todos nós, os "incluídos", psicólogos principalmente, devemos parar de dizer que nós não sabíamos...
Referências Bibliográficas:
Ariès, P. (1978). L'enfant et la vie familiale sous l'Ancien Régime. Paris: Editions du Seuil.
Audusseau-Pouchard, M. (1997). Adoptar um hijo hoy. Barcelona: Editorial Planeta.
Badinter, E. (1980). L'amour en plus. Paris: Flammarion.
Jabor, A (1997). Sanduíches de realidade. Rio de Janeiro: Objetiva.
Martínez Roig, A & Paúl Ochotorena, J. (1993). Maltrato y abandono en la infancia. Barcelona: Martínez Roca.
Weber, L.N.D. (1996). Des enfants sans famille au Brésil. XXVI Congrès International de Psychologie. Montreal, 16-21 août.
Weber, L.N.D. & Kossobudzki, L.H.M. (1996). Filhos da solidão: institucionalização, abandono e adoção. Curitiba: Governo do Estado do Paraná/Secretaria da Cultura.
Lidia Natalia Dobrianskyj Weber, Psicóloga (CRP 08/0774); Professora e Pesquisadora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná; Mestre e Doutora em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo.
Fonte: http://br.geocities.com/jeanprofessor/doutrina.html
Postado Por Cintia Liana
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