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"Adoção: um direito de todos e todas", CFP, capítuo 4.
Por Maurício Ribeiro de Almeida. Página 27.
[Os grifos em rosa são meus, para que prestemos atenção em conceitos centrais]
Ao discutirmos o tema da adoção, não podemos nos esquecer de que são as crianças e os adolescentes, assim como os adotantes, os maiores interessados no processo de escolha e de estabelecimento de relações vinculares. São as leis que regulamentam, legitimam e dão consistência ao vínculo, porém, se estas não estiverem sintonizadas com as necessidades dos adotantes e dos adotandos, transformam-se apenas em meros instrumentos burocráticos que aprisionam esses atores (candidatos a pais e filhos) em papéis estereotipados pouco coerentes aos fins aos quais se destinam.
O interesse por novas práticas de atendimento à infância e à adolescência foi mais estimulado a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, em 13 de julho de 1990. Esta lei federal versa sobre as questões da infância e adolescência e pressupõe a necessidade de implementação e implantação de políticas públicas que garantam os direitos dessa parcela da população. O artigo 19 do ECA é um dos exemplos dessa nova filosofia, pois, ao definir a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, garante-lhes a convivência familiar e comunitária. Ressalta o artigo: “Toda criança ou adolescente tem o direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária”, não sendo identificada aqui qualquer distinção jurídica entre a família biológica e a adotiva.
Nesse contexto, a adoção apresenta-se como uma forma viável e legal de estabelecimento de relações filio-parental. Contudo, os mecanismos jurídicos ainda não atendem de forma efetiva ao segmento que deles necessitam, sejam crianças ou adolescentes que aguardam por adoção, sejam pais e mães adotivos em potencial que não se inscrevem, entretanto, nos processos de seleção, por receio de serem discriminados ou reprovados. O sentimento de suposta rejeição dos adotantes baseia-se no fato de que estes acreditam não serem portadores das características consideradas “normais” no âmbito da sociedade heteronormativa que divulga um padrão estereotipado de família ideal.
A título de exemplo, podemos ilustrar um caso ocorrido na Comarca de São José do Rio Preto, em São Paulo, bastante divulgado pela mídia: uma transexual e seu companheiro, há meses, cuidavam de uma criança que lhes fora entregue pela genitora biológica, mas foram impedidos de efetivar o pedido de guarda, uma vez que os operadores do direito entenderam que a referida família não dispunha dos atributos necessários para propiciar os cuidados e a educação à criança.
O conceito de “adoções necessárias”, desenvolvido pelos grupos de apoio à adoção, mostra-se como um importante recurso de oposição aos elementos que dificultam o processo de adoção e como elemento norteador das especificidades da questão.
As adoções necessárias referem-se à importância da elaboração de estratégias que estimulem o acolhimento de crianças que apresentam problemas de saúde, cor da pele negra ou que se encontrem em faixa etária superior a dois anos (denominada adoção tardia). De fato, são estas as categorias de crianças e adolescentes que, em maior número, aguardam, nos abrigos, a possibilidade de adoção, mas que não são, contudo, o maior alvo de interesse dos adotantes que aguardam em listas de espera mantidas pelos tribunais de justiça. Ao conceito de adoções necessárias, poderíamos vincular o de aceitação de novas configurações parentais, para que esses potenciais candidatos à adoção também sejam acolhidos.
A família contemporânea passa, na atualidade, por significativas alterações em sua estrutura e funcionamento. Essas modificações podem ser visualizadas em diferentes modelos, encontrados nas seguintes composições: família monoparental, inter-racial ou miscigenada, recomposta, casais sem filhos, pessoas morando sozinhas, sistema de co-parentalidade*, entre outros arranjos e configurações. Às instituições governamentais e não-governamentais cabe dar legitimidade e funcionalidade às diferentes estruturas familiares, sejam elas tradicionais ou contestadoras dos modelos hegemônicos.
No bojo dessas mudanças e questionamentos acerca da instituição familiar, as lutas em prol dos direitos humanos e sexuais, que visam ao reconhecimento dos indivíduos que exibem sexualidades e papéis de gênero que não se enquadram nos padrões heteronormativos, têm repercussão significativa no âmbito das discussões sobre família, já que apontam para a “quebra” de paradigmas que fundam a lógica tradicional familiar: a heterossexualidade, relacionamentos monogâmicos, papéis de gênero rígidos, dentre outros.
As mudanças ocorridas nos conceitos de adoção articulam-se às transformações ocorridas na família ao longo da história e às preocupações com a infância, quando esta passou a gozar de maior interesse e cuidados por parte da sociedade moderna. Tais mudanças passaram a exercer influências também na legislação, conforme observado em adoções realizadas por pessoas solteiras ou por casais separados.
A adoção por homossexuais, embora muito propagandeada, ainda não se efetiva de forma consistente no âmbito da Justiça. A adoção efetivada pelo casal ou parceria homossexual é bastante rara, tendo-se conhecimento apenas de dois casos até o momento no Brasil: um em Catanduva, interior do estado de São Paulo, e outro efetivado no estado do Rio Grande do Sul. No caso de adoção homossexual, o que é muito praticado é a adoção monoparental, ou seja, apenas um dos elementos da parceria conjugal torna-se o requerente no processo judicial.
Dessa forma, entendemos que o contexto de avaliação desses adotantes é um importante momento de reflexão e problematização que deve ser propiciado pelo profissional aos usuários. Estão esses profissionais devidamente preparados e livres de estigmas para lidarem com a dimensão mais global do processo avaliativo? Estão eles centrados na questão da orientação sexual apenas como um critério de exclusão?
Ao abordamos o tema da adoção por homossexuais, nessa cartilha, não tivemos a pretensão de esgotar o assunto, torná-lo simplista ou enfatizá-lo como um tema de extrema complexidade. Nossa contribuição foi no sentido de trazer para o debate a adoção por homossexuais, suas possibilidades e os desafios que esta gera aos usuários que a almejam, bem como aos próprios profissionais que ainda se mostram inseguros para lidarem com as peculiaridades em suas práticas.
*Segundo Miriam Grossi (2005), este grupo pode ser composto tanto por um casal de lésbicas com um gay ou por um casal de gays com uma lésbica.
[Maurício Ribeiro de Almeida é Psicólogo judiciário, Mestre em Psicologia (Programa Psicologia e Sociedade) – Unesp/Assis; Doutorando pelo Instituto de Psicologia da USP – Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social; professor do Centro Universitário Unisalesiano – Lins/SP. Maurício928 @uol.com.br]
Referências:
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
DIAS. M. B. Conversando sobre homoafetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069
de 13 de julho de 1990.
GROSSI, M. P. Gênero e parentesco: famílias gays e lésbicas no Brasil. Cadernos Pagu, nº 24, Campinas, jan./jun. 2003.
MELLO, L. Novas famílias: conjugalidade e homossexualidade no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
POSTER, M. Teoria crítica da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
VAINFAS, R. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. 2 ed. São Paulo: Ática, 1992.
ZAMBRANO, E. Parentalidades impensáveis: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais. Horizonte Antropológico. v.12, nº 26, Porto Alegre, jul./dez. 2006.
Por Cintia Liana
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