"Uma criança é como o cristal e como a cera. Qualquer choque, por mais brando, a abala e comove, e a faz vibrar de molécula em molécula, de átomo em átomo; e qualquer impressão, boa ou má, nela se grava de modo profundo e indelével." (Olavo Bilac)

"Un bambino è come il cristallo e come la cera. Qualsiasi shock, per quanto morbido sia
lo scuote e lo smuove, vibra di molecola in molecola, di atomo in atomo, e qualsiasi impressione,
buona o cattiva, si registra in lui in modo profondo e indelebile." (Olavo Bilac, giornalista e poeta brasiliano)

domingo, 23 de maio de 2010

A Parentalidade de Cara Nova: quando os homossexuais se decidem por filhos

Foto: Facebook

"Adoção: um direito de todos e todas", CFP, capítuo 2.
Por João Ricard Pereira da Silva. Página 18.

[Grifei em rosa partes importantes para relexão e reafirmação.]

O tema da homoparentalidade transformou-se, de forma rápida e consistente, em objeto de valiosas discussões no campo da Psicologia. Uma vez que ele tenha a função de demarcar mudanças significativas na constituição da família contemporânea, tornou-se importante para a adaptação às transformações que transbordam a existência da família.

Tendo origem na França, o termo homoparentalidade é utilizado para nomear as relações de parentalidade exercidas por homens e mulheres homossexuais (ZAMBRANO, 2006). No Brasil, apesar dos nítidos avanços acerca das discussões sobre essa temática, faz-se necessário um investimento maior no campo da Psicologia. Se há anos essas famílias escondiam-se por trás dos segredos e dos não-ditos, atualmente elas se mostram nos consultórios e clínicas, nas escolas e outras instituições sociais, deixando evidente que a homossexualidade desfruta de uma verdadeira política de visibilidade na sociedade. Ela hoje diz respeito a todas as pessoas.

Tendemos a considerar as configurações homoparentais* como as mais novas famílias que compõem o cenário da vida social familiar. Devido à limitada quantidade de pesquisas com estas famílias, diversos profissionais da Psicologia apresentam dúvidas relacionadas a esta dinâmica familiar e à vivência das suas parentalidades. Especificamente no campo jurídico, os homossexuais encontram significativas dificuldades ligadas aos processos de adoção e ao reconhecimento da sua família no campo legal. Enquanto muitas instâncias jurídicas sempre procuram aquilo que “é melhor para a criança”, raramente percebem que autorizar a sua adoção por homossexuais pode fazer parte do leque de opções oferecido a ela. Essa perspectiva deixaria mais claro que a adoção por homossexuais constitui-se como algo muito positivo, não somente para as pessoas que adotam, mas ,principalmente, para as crianças que são adotadas.

Muitas dúvidas e preconceitos rondam as práticas dos profissionais que se deparam com essa nova configuração familiar. Existe um receio de que as crianças cujos pais sejam gays ou lésbicas possam, no futuro, apresentar alguma identificação com a homossexualidade, como se a convivência da criança com dois pais ou duas mães tivesse o poder de determinar a identidade sexual do filho. Embora outros tantos estudos demonstrem o contrário, estas concepções predominam entre os responsáveis pelas autorizações à adoção de pessoas que se declaram homossexuais. Entre alguns estudos realizados nos Estados Unidos com estas famílias (GOMES, 2003), não se verificou diferenças no desenvolvimento psicológico e escolar dessas crianças, juntamente aos aspectos voltados à adaptação social, quando comparadas com famílias nucleares convencionais.
Embora encontremos algumas pesquisas que se dedicam à investigação dessas famílias, mostrando o sucesso dos homossexuais no exercício da sua parentalidade, diversos setores sociais insistem em questionar a capacidade destas pessoas em cuidar de uma criança e oferecer, a ela, uma convivência familiar saudável. Mais uma vez entra, em cena, o exercício de poder da heteronormatividade, em detrimento da aceitação das diferenças e das múltiplas possibilidades existentes para a manutenção da família.
Podemos pensar, a princípio, que este ponto de vista encontra-se fortemente enraizado numa crença que se baseia unicamente na estruturação de identidades heterossexuais. Uma vez que nem todas as pessoas, cujos pais são heterossexuais, tornam-se heterossexuais, não se pode afirmar que todas as pessoas cujos pais sejam homossexuais tornem-se homossexuais. A questão é muito mais complexa do que uma simples aposta, relativizada nos resultados prontos dos jogos que envolvem “causa” e “efeito”. A relação entre filhos e pais homossexuais precisa ser olhada com mais naturalidade, uma vez que estas crianças conseguem estabelecer o vínculo parental com uma ou duas pessoas, prontas para a vivência da parentalidade.


É preciso questionar se o “desejo de normalidade” imposto aos homossexuais, de forma direta ou indireta, não impede ou dificulta a naturalidade da sua parentalidade. Visto que a sociedade, antes mesmo de autorizar ou reconhecer estas famílias, já deduz problemas futuros relacionados às questões identitárias dos seus membros, é possível que se instalem, aí, fortes sentimentos de auto-cobranças infindáveis. Não nos esqueçamos, portanto, que os olhares (avaliativos?) dos profissionais das áreas psicológicas, sociais e jurídicas, envolvidos nas suas relações, implicam quase sempre em cobrança e vigilância capazes de levar essas pessoas a um sofrimento psíquico indescritível.

Em um trabalho anterior (SILVA, 2008) identificamos que, apesar de muitas dúvidas acerca das suas novas configurações familiares, as mulheres que vivenciam a homoparentalidade mostram-se felizes com esta experiência. Os filhos passam a ocupar um lugar especial em suas vidas, fazendo que com os casais procurem alternativas diversas, para uma vivência parental mais autêntica e cada vez menos mascarada. A realização pessoal que esta experiência proporciona faz com que cada uma delas invista, cada vez mais, nas múltiplas possibilidades que a própria experiência parental promove.

O conceito de parentesco utilizado por Butler é percebido tal como são considerados os conceitos de parentalidade. A autora entende por parentesco como “um conjunto de práticas que estabelece relações de vários tipos que negociam a reprodução da vida e as demandas da morte” (BUTLER, 2003, p. 221). Em outras palavras, em todas as relações que envolvem a vida humana, desde o nascimento até a morte, perpassam as necessidades voltadas aos cuidados primeiros à criança e às relações de dependência que transpassam de geração a geração. As novas configurações familiares surgem para colocar em xeque a concepção heterocêntrica de família como única, enfrentando fortes desafios. Uma vez reconhecidas, estas novas formas de fazer família ameaçam a cristalização de modelos anteriores, até então inquebráveis.

Grossi destaca que os diversos estudos antropológicos feministas que partem das reflexões sobre o parentesco, realizados a partir das décadas de 1970/80, tentam, de diversas formas, “desnaturalizar” as relações de parentesco. No entanto, a autora faz uma observação bastante pertinente acerca da nossa realidade contemporânea: “poucos antropólogos refletiram sobre o lugar das relações entre indivíduos do mesmo sexo nas estruturas de parentesco de diferentes sociedades” (GROSSI, 2003, p. 276). Esta constatação leva-nos a refletir sobre quais os motivos deste “buraco” encontrado na Antropologia e nas outras ciências sociais e humanas. Talvez a resposta esteja ligada às questões próprias da (in)visibilidade das conjugalidades homossexuais, que vêm sendo desafiadas pelos investimentos de uma verdadeira política de visibilidade dos homossexuais*.

Nessa perspectiva, os profissionais da Psicologia devem se apropriar das discussões que privilegiam o tema das uniões entre pessoas do mesmo sexo e da homoparentalidade. Compreender melhor essas dinâmicas familiares pode ser um passo rumo à construção de uma sociedade mais igualitária, que convive bem com todas as diferenças. Um outro passo pode ser dado frente ao investimento em produções científicas capazes de dizer sobre uma experiência que causa polêmica, mas que já não quer ser percebida como um mero “arranjo” familiar. Pelo contrário, essas famílias constituem-se como famílias iguais a quaisquer outras. A diferença está na diferença natural da condição humana: como não há um indivíduo igual a outro, não há uma família igual a outra.

*Homoparentalidade é um termo surgido em 1997 para designar uma situação em que pelo menos um dos pais assume-se como homossexual (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p.48).

*No mês de maio de 2008, a população da cidade do Recife (PE) deparou-se com uma campanha inédita na história do país: diversos outdoors espalhados pela cidade imprimiam uma grande fotografia de duas mulheres com sua filha e a mensagem: “uma mãe é aquela que ama e protege. Duas mães são aquelas que amam e protegem”, lembrando o mês das mães como um mês importante também para as mulheres lésbicas com filhos. Essa iniciativa deixa claro que a homoparentalidade vem se transformando em uma vivência visível à sociedade.

João Ricard Pereira da Silva é Psicólogo, psicomotricista relacional, Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco.

Por Cintia Liana

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