"Uma criança é como o cristal e como a cera. Qualquer choque, por mais brando, a abala e comove, e a faz vibrar de molécula em molécula, de átomo em átomo; e qualquer impressão, boa ou má, nela se grava de modo profundo e indelével." (Olavo Bilac)

"Un bambino è come il cristallo e come la cera. Qualsiasi shock, per quanto morbido sia
lo scuote e lo smuove, vibra di molecola in molecola, di atomo in atomo, e qualsiasi impressione,
buona o cattiva, si registra in lui in modo profondo e indelebile." (Olavo Bilac, giornalista e poeta brasiliano)

quinta-feira, 27 de maio de 2010

A adoção por pessoas homossexuais e em casamentos homoafetivos: uma perspectiva psicanalítica

Foto: Gatty Images


"Adoção: um direito de todos e todas", CFP, capítuo 5.
Sérgio Laia. Página 32.

No caso dos seres humanos, independentemente de sua orientação sexual, a adoção é um procedimento que pode ser considerado generalizado. Afinal, ninguém “nasce” pai ou “nasce” mãe e, embora seja como filhos que todos “nasçamos”, a filiação, a paternidade e a maternidade não são, entre os seres humanos, processos intrinsecamente biológicos, propriamente naturais ou instintivos, tal como podemos constatar a partir de vários estudos antropológicos, jurídicos, psicanalíticos, sociológicos e, mais recentemente, também por meio das experiências subjetivas e culturais geradas com e pelos processos de inseminação artificial. Por isso e, de um modo especial, em Psicanálise, é possível afirmarmos que todos nós somos adotados: é a partir de um processo de “adoção simbólica” que os seres humanos são “batizados” como “pai”, “mãe” e “filho(a)” e, ao se reconhecerem assim (mesmo quando atravessados por “conflitos familiares”), eles se tornam, no dia-a-dia de suas existências, efetivamente “pai”, “mãe” e “filhos”.

Considerando essa perspectiva generalizada de uma “adoção simbólica”, a adoção de crianças por pessoas homossexuais ou nos casamentos homoafetivos não apresentaria diferenças com relação àquelas realizadas por casais heteroafetivos. Poderiam, então, ser utilizados os mesmos procedimentos e orientações que guiam qualquer processo de adoção: é importante garantira estabilidade da criança a ser adotada, proporcionando-lhe não apenas uma “casa” ou a “sobrevivência pela satisfação de suas necessidades”, mas o que chamamos comumente de “um lar” e “uma vida”.

No âmbito da Psicanálise, essas orientações e esses procedimentos sequer se diferenciariam daqueles que se espera da família em geral. Podemos depreendê-los, por exemplo, numa passagem de um breve texto do psicanalista francês Jacques Lacan, intitulado “Nota sobre a criança” e publicado em Outros Escritos. A família conjugal é o que se mantém “na evolução das sociedades” porque enfatiza “o irredutível de uma transmissão (...) de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo”.

Poderíamos, então, perguntar: que desejo não-anônimo seria esse? Uma das espostas possíveis apontaria para o desejo em jogo na fala de alguém capaz de sustentar, com todos os riscos e os ganhos que isso implica, uma declaração como: “quero essa criança como meu filho”, “quero essa criança como minha filha”.
Afinal, quando alguém decide se tornar pai ou mãe, um desejo de adoção coloca-se em ato. Este ato é uma declaração pública que diz sim à responsabilidade de sustentar um processo particular de filiação/adoção. Devemos, portanto, averiguar, em cada situação, se a declaração “quero essa criança como filho(a)” comporta efetivamente o consentimento com uma responsabilidade, se há mesmo quem responda por este desejo e se, por isso, ao ser o desejo de alguém, não é anônimo, mas um desejo particular de sustentar, na lida com a criança, as funções paterna e materna.

Afirmar a importância da família na “transmissão de uma constituição subjetiva” é um outro modo de dizer que é por adoção que uma família forma-se, mesmo se não há factual e juridicamente nenhum membro desse grupo que tenha sido adotado. Portanto, um modo de verificarmos se há uma família é buscarmos o que pode indicar, num grupo que declara ser uma família, a transmissão de um desejo capaz de dizer o seu nome.

Ainda na mesma “Nota sobre a criança”, Lacan dá-nos também mais dois indicativos para julgarmos o que seriam as funções do pai e da mãe: da mãe, “que seus cuidados tragam a marca de um interesse particularizado, mesmo que pela via de suas próprias faltas”; e, do pai, “que seu nome seja o vetor de uma encarnação da Lei no desejo”. Interessante destacar, para a questão abordada nesta cartilha, que Lacan não corresponde, necessariamente, a função materna a uma mulher e a função paterna a um homem. Não é no campo da anatomia que o exercício destas funções decide-se. Entretanto, na medida em que fala de “interesse” e de “desejo”, Lacan tampouco faz uma abstração da sexualidade no que concerne a tais funções.

Lacan associa a função materna aos cuidados com a criança, mas almeja que esses cuidados comportem uma particularidade, mesmo que baseada nas faltas de quem cuida: mãe é quem, por experimentar uma falta, pode vir a querer uma criança como um modo de responder a essa falta e, por isso, torna-se parte interessada nos cuidados que dedica a quem toma como “sua” criança.

No mesmo viés, a função paterna não implica puramente a abstração de um nome (de família) que se dá a uma criança. Esse nome é um vetor, ou seja, esse desejo de responder pela nomeação de um filho não é sem Lei. A encarnação desta Lei no desejo será responsável por inscrever a forma particular daqueles que se “tornam” pais, de modo que a efetiva consideração de uma criança como filho(a) faz com que ela deixe de ser uma “criança qualquer” e se torne, para um pai, a “sua” criança, aquela que traz o seu nome, a marca da sua família.

Se, a partir da Psicanálise, poderemos afirmar que “função materna” e “função paterna” não correspondem, necessária e biunivocamente, a uma mulher e a um homem, é porque a correspondência dessas funções com a sexualidade de quem responde por cada uma delas processa-se por contingência: para Lacan, elas não seriam dissociáveis do desejo e da particularidade de quem as encarna, não estariam separadas do encontro – sempre marcado por algum tipo de casualidade, de contingência – entre os sexos. Na pluralidade das soluções da constituição subjetiva de uma criança, temos relatos cotidianos de que não há uma norma universal para a “criação correta” de crianças: erros e acertos podem acontecer tanto numa família constituída tradicionalmente por seus pais biológicos quanto em “famílias recompostas”, “famílias monoparentais”, “famílias de criação” etc. No entanto, por que tenderíamos a atribuir a função do pai a um homem; a função da mãe a uma mulher; e o par familiar a um casal heteroafetivo? Há, sem dúvida, razões históricas, sociais, culturais e psíquicas em jogo nesse tipo de atribuição, mas a tendência de fazermos destas razões uma necessidade tem a ver também com uma espécie de temor que temos da dimensão do imprevisto e do que nos parece incalculável ou sem avaliação prévia possível.

A questão, portanto, não é impedir a adoção de crianças por parte de casais homoafetivos por “temermos moralmente” ou “não conseguirmos avaliar científica e precisamente” o que poderá acontecer com elas, e, assim, por preferirmos o conforto do que supomos necessário, porque já é conhecido. Ora, é uma desumanidade atroz e anônima criar filhos sem disposição para enfrentar o que é da ordem do imprevisto.

Sem dúvida, haverá particularidades e especificidades na adoção de crianças por casais homoafetivos, inclusive porque não se trata de uma experiência ainda comum. Entretanto, dar um amparo jurídico e legal a esse tipo de adoção poderá ser um fator importante para que ela não seja recusada por ser pouco comum. Além disso, particularidades e especificidades não são uma exclusividade da adoção de crianças por casais homoafetivos: a Psicanálise ensina-nos que o particular e o específico são elementos decisivos para a “transmissão de uma constituição subjetiva” promovida por uma família (formada a partir de um casal homoafetivo ou de um casal heteroafetivo), para a formação de “um lar” e para a criação de “uma vida” dignos desses nomes.

[Sérgio Laia é Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP); Diretor do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSMMG); Professor Titular IV da Universidade FUMEC e Pesquisador do Programa de Pesquisa e Iniciação Científica da Universidade FUMEC (ProPIC-FUMEC); Mestre em Filosofia e Doutor em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).]


Por Cintia Liana

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