"Uma criança é como o cristal e como a cera. Qualquer choque, por mais brando, a abala e comove, e a faz vibrar de molécula em molécula, de átomo em átomo; e qualquer impressão, boa ou má, nela se grava de modo profundo e indelével." (Olavo Bilac)

"Un bambino è come il cristallo e come la cera. Qualsiasi shock, per quanto morbido sia
lo scuote e lo smuove, vibra di molecola in molecola, di atomo in atomo, e qualsiasi impressione,
buona o cattiva, si registra in lui in modo profondo e indelebile." (Olavo Bilac, giornalista e poeta brasiliano)

sábado, 22 de maio de 2010

Conjugalidade, Parentalidade e Homossexualidade: Rimas Possíveis

Foto: Facebook

"Adoção: um direito de todos e todas", CFP, capítuo 1.
Por Anna Paula Uziel. Página 14.

Os anos 90 do século passado foram marcados pela AIDS. Os extremos – as mortes em decorrência da doença e a qualidade de vida proporcionada pelo coquetel – evidenciavam a gravidade da situação ao mesmo tempo em que davam esperança de vida. A epidemia foi mudando o seu perfil, atingindo diferentes pessoas de sexo, idade e grupo social distintos. Nesse cenário, crescia a luta por direitos, marcada também pelos debates sobre direitos sexuais e reprodutivos nas conferências sobre mulheres, população, desenvolvimento.

O movimento homossexual, posteriormente nomeado de GLBT, sigla que ressalta a diversidade, é peça fundamental, em todo o mundo, para a visibilidade dos grupos marginalizados contidos na sigla. Se, por um lado, podemos dizer que a imagem que se construiu da AIDS atrelada a gays aguçou o preconceito, por outro pôs no debate questões que antes eram tratadas no gueto, de forma bastante isolada, ou sequer eram tematizadas.

Na última década do século, nos diversos países do mundo surgem, de forma cada vez mais intensa, lutas pelo reconhecimento da conjugalidade para gays, lésbicas e travestis. A morte precoce dos parceiros e o aparecimento oportunista das famílias de origem, interessadas nos bens que seus familiares deixavam,  intimavam a criação de instrumentos legais que garantissem ao parceiro vivo bens patrimoniais e benefícios decorrentes da união afetiva. As respostas formais, legais, institucionais desde então têm sido bastante diversificadas. Em alguns países, como a Espanha, uma mudança legal garantiu não apenas direitos isolados, mas as mesmas condições em todas as esferas da vida, substituindo na lei a exigência de sexos distintos para ações cotidianas conjuntas de um par, como o casamento e a parentalidade. O governo espanhol tomou para si a luta pela garantia da igualdade de direitos, defendendo-a no parlamento e garantindo a sua aprovação.

Em outros países, como o Brasil, a conquista de direitos tem se dado prioritariamente no âmbito do Poder Judiciário, ainda que existam garantias pontuais, em municípios e estados, que concedem Previdência Social, por exemplo, enquanto a lei nacional não reconhece de forma ampla os direitos dos casais cuja composição escapa do standard.

O projeto da então deputada Martha Suplicy, de 1995, sofreu modificações que transformaram o seu caráter inicial, uma tentativa de escamotear a dimensão conjugal do que se gostaria de estabelecer. O substitutivo que tramita desde 1996 no Congresso interdita, por exemplo, a adoção em conjunto por pessoas do mesmo sexo, retrocesso na garantia de direitos. Este projeto modificado entrou em pauta e foi retirado estrategicamente inúmeras vezes, para que não se perdesse a chance de ser aprovado. A pressão da bancada religiosa continua sendo o principal motivo para não haver sequer votação.

Um dos maiores pontos de tensão na luta pelo direito ao reconhecimento da conjugalidade, seja entendida como casamento ou não, é a percepção, para alguns, de que se trata de uma prática integracionista: debate-se a legitimidade dessa bandeira, visto que é entendida por parte do movimento como uma submissão ao modelo heterossexista de organização da vida.

Nos últimos anos tem crescido o número de cartórios que registram as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, artifício utilizado para garantir direitos, para se registrar publicamente vidas em comum, oficializar uniões.

A família, tradicional base da sociedade, distante durante muito tempo do ideário daqueles que não viviam relações procriativas, passou a ser objeto de desejo de muitos. Mudança nas pessoas?! Vontade de se adequar a uma forma de viver que responda a padrões entendidos como de normalidade?! Conquista do direito de escolha?! Possibilidade de declarar o desejo de ter um filho com aquele/a que ama?! Não há resposta correta nem definitiva: os entendimentos são plurais.

Em relação à parentalidade, por mais que lideranças do movimento carioca entendessem-na como um direito de poucos e de segunda ordem, dada a urgência do combate à violência a que estão expostos gays, lésbicas e travestis, ela tem sido requisitada.

Cada vez mais filhos de relações heterossexuais anteriores convivem com seus pais e mães e parceiro/as, e as pessoas podem declarar a sua homossexualidade ou a sua travestilidade sem que isso as impeça de adotar uma criança. E já se pleiteia abertamente a reprodução assistida.

A morte da cantora Cássia Eller, em 2001, seguida da decisão da Justiça de conceder à Eugenia, sua companheira, a guarda de Chicão, seu filho, inaugurou nova história. A mãe, sendo uma figura midiática; a criança, tendo o pai morto; um avô, cuja imagem construiu-se como de um oportunista, tudo isso pode ter contribuído para a decisão favorável à guarda pela “mainha”, que também contou com a força da escola e da terapeuta do filho, que não se furtaram a declarar posições. Justiça, Medicina e educação, campos geralmente mais tradicionais, convocados, posicionaram-se pela manutenção do que foi entendido como núcleo familiar.

Em 2006, a decisão em Catanduva, pela inclusão dos nomes dos dois pais no registro civil de Isadora, foi um divisor de águas. Embora não tenha sido a primeira decisão neste sentido, teve excelente repercussão na mídia e abriu um precedente. Os juízes, se provocados, certamente concederão mais inúmeras adoções a pais e mães que se candidatem como casal, definindo certo entendimento da lei.

Aos poucos vão sendo combatidos os principais argumentos contrários à parentalidade por gays e lésbicas: formato de família ainda não reconhecido em lei que, portanto, poderia prejudicar a criança na vigência do casamento ou, mais ainda, em processo de separação; fantasma de abuso sexual, se forem dois homens, pelo risco da exacerbação de uma sexualidade incontrolável; confusão dos papéis de identificação para a criança. Os argumentos estruturam-se em paradigmas médicos e jurídicos para ter sustentação.

Embora não sejam comuns no Brasil – e eu não acredite que façam sentido – há pesquisas que demonstram não haver danos no desenvolvimento infantil entre crianças cujos pais e mães sejam gays e lésbicas. As semelhanças nos processos educativos são maiores segundo o gênero, ou seja, mulheres possuem formas mais próximas de cuidar, sejam elas hetero ou homossexuais, o mesmo ocorrendo entre os homens.

Podemos afirmar, como diz Miguel Vale de Almeida, que o acesso ao casamento ou à adoção de crianças parece ser a última barreira contra a igualdade formal entre a população presumidamente heterossexual e gays, lésbicas e travestis.

Anna Paula Uziel é Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisadora associada do Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos (IMS/UERJ).

Referência:
GROSSI, Miriam; UZIEL, Anna Paula; MELLO, Luiz. Conjugalidades, parentalidades e identidades gays, lésbicas e de travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
MELLO, Luiz. Novas famílias. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
UZIEL, Anna Paula. Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.


Por Cintia Liana

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