"Uma criança é como o cristal e como a cera. Qualquer choque, por mais brando, a abala e comove, e a faz vibrar de molécula em molécula, de átomo em átomo; e qualquer impressão, boa ou má, nela se grava de modo profundo e indelével." (Olavo Bilac)

"Un bambino è come il cristallo e come la cera. Qualsiasi shock, per quanto morbido sia
lo scuote e lo smuove, vibra di molecola in molecola, di atomo in atomo, e qualsiasi impressione,
buona o cattiva, si registra in lui in modo profondo e indelebile." (Olavo Bilac, giornalista e poeta brasiliano)

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Família e o processo de diferenciação na perspectiva de Murray Bowen

Foto: Google Imagens


Elizabeth Medeiros de Almeida MartinsI; Elaine Pedreira RabinovichI; Célia Nunes SilvaI,II

I Universidade Católica do Salvador, Brasil
II Universidade Federal da Bahia, Brasil

(...)
Bowen foi um estudioso, investigador e professor considerado um teórico inovador da terapia de família. Seu arcabouço teórico concentra-se em torno de duas forças vitais que se contrabalançam: aquelas que levam a pessoa à união com sua família e aquelas que a impulsionam para se libertar rumo à individuação. Quando ocorre um desequilíbrio dessas forças em direção à união, ocorre fusão, aglutinação e indiferenciação. Essas noções estão imbricadas, no estudo da complexidade da formação emocional do indivíduo, em torno dos conceitos de massa indiferenciada do ego; diferenciação do self; processo de projeção familiar; processo de transmissão multigeracional; posição entre irmãos; e triângulo, que apresentaremos a seguir (Bowen, 1989; Kerr & Bowen, 1989). São esses conceitos que exporemos a seguir, baseados no autor e em autores que o complementam.

Bowen e sua equipe, a partir de estudos sobre a esquizofrenia, em 1954, observaram um apego simbiótico do paciente à sua mãe, ampliando essa hipótese para os demais membros da família. Desse olhar para a família e para o seu processo emocional, Bowen construiu seus principais conceitos.

O conceito de massa indiferenciada remete ao de fusão ou aglutinação, termo utilizado por Minuchin (1982) para se referir a um estilo transacional caracterizado por um “sentimento de pertencimento que requer uma máxima renúncia de autonomia” (p. 60). Essa força de aglutinação em permanente tensão, exposta aos fatores externos que também exercem influência nas relações familiares, existe em todas as famílias, em variados graus de intensidade. O estresse originado de diferentes fatores psicossociais aumenta a força de união que age sobre a massa indiferenciada do ego, propiciando uma maior aglutinação de seus membros.

Foley (1990) refere-se a três maneiras utilizadas pelo casal para controlar a intensidade da fusão do ego com a massa do ego da família. A primeira se expressa pelo conflito conjugal. A segunda é marcada pelo aparecimento de uma disfunção em um dos cônjuges – assim, um deles cederá ao outro, tornando-se dependente. A terceira maneira usada pela díade conjugal, visando aliviar a situação estressante, é a transmissão da tensão para um ou mais dos filhos, que apresentará algum sintoma.

Toda criança nasce fusionada, indiferenciada em relação à sua família. Durante seu desenvolvimento, sua principal tarefa será diferenciar-se para alcançar autonomia e independência. Na família, as crianças experimentam tanto o pertencimento quanto a diferenciação. Pertencer significa participar, saber-se membro desta família, partilhar as suas crenças, valores, regras, mitos e segredos. Diferenciar refere-se à afirmação de sua singularidade, à sua individuação e ao seu direito de pensar e expressar-se independentemente dos valores defendidos por sua família.

Segundo Nichols e Schwartz (1998), a diferenciação do self, pedra fundamental da teoria de Bowen, é ao mesmo tempo um conceito intrapsíquico e interpessoal. “A diferenciação intrapsíquica é a capacidade de separar o sentimento do pensamento” (p. 312). Kerr e Bowen (1988) denominaram reação à resposta impulsiva.

A escala de diferenciação do self ajuda a compreender o processo de amadurecimento do indivíduo, as respostas significativas, o funcionamento e as disfunções ocorridas nos processos relacionais. Essa escala, de uma importância teórica mais do que classificatória, é dividida em quatro quadrantes: no quadrante inferior, a diferenciação do eu é mínima. As pessoas que funcionam nessa categoria vivem em um mundo de sentimentos e são quase inteiramente dependentes das demais. São pessoas incapazes de distinguirem a emoção da razão. São extremamente reativas e apresentam dificuldades relacionais. No segundo quadrante (25-50), estão aquelas pessoas ainda pobremente diferenciadas, mas capazes de funcionarem de maneira limitada. São pessoas facilmente influenciadas, pois não têm opiniões próprias. No terceiro quadrante (situado entre 50 e 75), estão pessoas que têm opiniões bem diferenciadas, conseguem assumir a “posição eu” e apoiar-se menos no julgamento dos outros. No quarto quadrante (situado entre 75-100), estariam aquelas dotadas de uma plena maturidade, que funcionariam com alto grau de independência. São pessoas seguras de si, com opinião bem definida, embora não necessitem expressá-las de forma dogmática ou rígida. Assumem responsabilidade por seus atos, são tolerantes a opiniões divergentes e não entram em debates para provar que estão certas.

A família é considerada uma unidade emocional. Segundo Papero (1998), “seus membros acham-se ligados uns aos outros de tal maneira que o funcionamento de cada um automaticamente afeta o dos demais” (p. 72). O sistema emocional responde de acordo com forças externas à família, incluindo a família ampliada, situações de trabalho e fatores sociais. “Para um indivíduo ou grupo em particular, as seqüências comportamentais e interacionais que refletem o sistema emocional possuem uma característica de repetição” (Papero, 1998, p. 74).

O sistema emocional humano é passível de ser influenciado pela ansiedade crônica, (Kerr & Bowen, 1988), um estado ou condição crônica de existência, independente de qualquer situação ou estímulo, gerando o apego ansioso, “uma forma patológica de ligação orientada pela ansiedade e pela emocionalidade que subvertem a razão e o autocontrole” (Nichols & Schwartz, 1998, p. 310).

Nichols e Schwartz (1998) ressaltam que o apego emocional é um dos aspectos fundamentais da diferenciação. A dinâmica básica subjacente ao apego emocional seria a alternância entre ansiedade de separação e de incorporação. “A fusão emocional entre a mãe e o filho(a) pode assumir a forma de um vínculo dependente afetivo ou uma luta conflituosa” (p. 314).

Projeção familiar é o processo pelo qual os pais transmitem aos filhos sua imaturidade e sua indiferenciação conforme expressas no relacionamento (Kerr & Bowen, 1988). A projeção é diferente do “cuidado” e se caracteriza por uma preocupação ansiosa, confusa e excessiva com um ou mais filhos ou filhas. O filho escolhido, objeto da projeção dos pais, torna-se o mais ligado a eles e, conseqüentemente, aquele com um nível mais baixo de diferenciação do self. Esse filho busca ativamente o papel de bode expiatório e “apesar disso, a ‘vítima’ recebe seu carinho, ainda que negativo” (Foley, 1990, p. 105).

A mãe transmite sua ansiedade ao transferir para o filho uma carga emocional de suas frustrações, ao invés de estimulá-lo no seu processo de diferenciação. Dessa forma, prejudica emocionalmente o filho, que se torna infantilizado, desenvolvendo aos poucos sintomas de imaturidade psicológica.

O processo de transmissão multigeracional, também exposto por Kerr e Bowen (1988), corresponde à passagem do processo emocional da família através de várias gerações, tanto do marido quanto da mulher. O fluxo de ansiedade de uma família pode ser tanto vertical quanto horizontal.

O fluxo vertical em um sistema inclui padrões de relacionamento e funcionamento que são transmitidos para as gerações seguintes de uma família principalmente através do mecanismo de triangulação emocional... questões opressivas familiares com os quais nós crescemos... O fluxo horizontal no relacionamento familiar inclui a ansiedade produzida pelo estresse na família conforme ela avança no tempo, lidando com as mudanças e transições do ciclo de vida familiar. (Carter & Mc Goldrick, 1995, pp. 11-12)

Eventos estressantes podem levar a família à disfunção por várias gerações posteriores. Retratam uma situação de aumento das tensões familiares eventos tais como: morte prematura, nascimento de uma criança deficiente, enfermidade, acidente, entre outros. Segundo Papero (1998), aplica-se o conceito de processo de transmissão multigeracional “ao modo pelos quais os processos de projeção familiar, repetidos de geração em geração durante longos períodos de tempo, levam diferentes ramos de uma família a alcançar níveis mais baixos ou mais altos de diferenciação” (p. 87).

A escolha do parceiro no matrimônio está relacionada ao nível de diferenciação do eu. A pessoa tende a escolher o parceiro com nível de diferenciação semelhante ao seu. Os vários filhos podem ter níveis diversos de diferenciação, mas não muito distantes daqueles alcançados pelos pais.

É importante a posição da pessoa na família de origem e nas relações futuras com o cônjuge (Bowen, 1991). A posição fraterna pode predizer algumas dificuldades conjugais. Aqueles que contraem matrimônio com cônjuge da mesma posição fraterna terão mais dificuldades de adaptar-se ao casamento do que aqueles que se casam com cônjuge de posição complementar. A relação entre irmãos é considerada “o primeiro laboratório social, no qual as crianças podem experimentar relações com iguais. Dentro desse contexto, as crianças apóiam, isolam, escolhem um bode expiatório e aprendem umas com as outras” (Minuchin, 1982, p. 63).

O conceito de triangulação se refere a um sistema inter-relacional entre três pessoas, envolvendo sempre uma díade e um terceiro, que será convocado a participar quando o nível de desconforto e de ansiedade aumentar entre as duas pessoas. Uma delas, então, buscará uma terceira para aliviar a tensão. Os triângulos aparecem no processo emocional interacional que se estabelece no sistema familiar e transgeracional. Calil (1987) considera o triângulo como “um bloqueador das emoções de um sistema” (p. 103).

Sair das triangulações orienta o outro a um relacionamento em nível superior de maturidade. Os triângulos, para Kerr e Bowen (1988), “são para sempre” (p. 135). Em situações de menor tensão, permanecem latentes, reaparecendo quando os conflitos recrudescem. Assim, os triângulos são susceptíveis à ansiedade, tornando-se mais ou menos ativos em situações de tensão. Nesse sentido, o processo de triangulação constitui um mecanismo de resposta que acontece nos processos relacionais ante situações estressantes.

Na família, observam-se vários triângulos que se formam e se desfazem de forma repetitiva. Os triângulos não são fixos nem estáticos, sofrendo deslocamentos, a depender do nível de ansiedade e da dinâmica interna da família. É importante ressaltar que estão ligados a uma unidade emocional mais ampla, de onde também recebem influência, denominada triângulos entrelaçados, onde “a ansiedade, incapaz de ser contida dentro de um triângulo, se expande para um ou outro triângulo” (Kerr & Bowen, 1988, p. 139). Esses autores denominam esse processo de ativação de triângulos imbricados, que podem ser de difícil observação.

Para Andolfi e Ângelo (1988), compreender a entrada de um terceiro elemento nas díades em situação de conflito “acrescenta uma dimensão desconhecida à interação, viabilizando alianças, além de uma nova relação de inclusão-exclusão... como também pode estimular a manifestação de recursos individuais ocultos e a evolução do sistema” (p. 33).

O entendimento dos processos de triangulação está ligado à compreensão de como se dá o processo de comunicação, como a partir da linguagem não-verbal – tom de voz, mudanças na postura corporal e outros sinais não verbais – que podem ou não ativar os triângulos.

A teoria boweniana enfatiza que, para compreender a família, é necessário desvelar o que acontece nas gerações que a precederam e ampliar o olhar para a família extensa, elucidando vários nós que, no estudo estritamente da família nuclear, podem permanecer obscurecidos. Cada indivíduo:

é parte de uma rede de relações que envolvem as respectivas famílias de origem.... Através de interações que permitem a cada pessoa experimentar o que é e o que não é admissível na relação, é criada a base de uma unidade sistêmica. (Andolfi, Ângelo, Menghi, & Corigliano, 1984, p. 18)

Não existem famílias isoladas, e sim uma complexidade social, econômica e política em que essas famílias estão imbricadas (Rabinovich, 2002). Pensar a diferenciação do self familiar atualmente requer entender as novas configurações da família em suas várias expressões do processo emocional societário. Note-se que o pólo de tensão nas famílias aumenta, complexifica-se e expande-se rapidamente, mediado pelos meios de comunicação e pelos avanços tecnológicos que ocorrem na sociedade contemporânea.

As famílias constituídas hoje passam por mudanças sucessivas, de modo que, “se reconhecermos que há novos e diversos tipos de famílias, também deveríamos, no mínimo reconhecer que o ciclo pelos quais elas passam também pode ser diferente” (Molina-Loza, 1998, p. 69). Na medida que há uma complexificação dos modos de vida devido a vários estresses, como o desemprego e a exclusão, Andolfi e Nichilo (1991, p. 11) consideram que a retomada das gerações anteriores, conforme proposto por Bowen, encontra uma variável não prevista por ele – o tempo – quando os valores das gerações anteriores não são mais compreendidos pelas gerações atuais.

Assim, compreender o limite da teoria de diferenciação do self passa pela compreensão da forma como as famílias estão estruturadas nos dias atuais.

Exporemos, a seguir, o estudo de caso a partir do qual os conceitos acima expostos serão apresentados e elaborados.

1 Dissertação apresentada à Universidade Católica do Salvador, em 2005, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Família na Sociedade Contemporânea. Orientação de Elaine Pedreira Rabinovich. Co-orientação de Célia Nunes Silva.
2 COFAM - Pertencente ao Movimento Familiar Cristão (MFC) de Salvador-BA, onde funciona o Curso de Especialização e Formação em Terapia de Família da Universidade Católica do Salvador (UCSAL).

Elizabeth Medeiros de Almeida Martins, Assistente Social, Docente da Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Endereço eletrônico: elizabeth.martins@hotmail.com
Elaine Pedreira Rabinovich, Docente da Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Endereço para correspondência: Rua Maranhão, 101. CEP 01240-001 - São Paulo-SP. Endereço eletrônico: elainepr@clas.com.br
Célia Nunes Silva, Médica, especilaista em terapia familiar. Docente da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Católica do Salvador. Endereço eletrônico: celianunessilva@yahoo.com.br


Postado Por Cintia Liana

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