Por Amanda Corrêa
Fotos Retrato 3 Estúdio
Ilustração Paulo Werner
Dados do Cadastro Nacional de Adoção apontam queda da procura por crianças brancas. A revista Star conta histórias emocionantes de quem nunca se importou com o preconceito.
De acordo com os dados do Cadastro Nacional de Adoção de 2008, 70% dos adotantes exigiam crianças brancas na hora de adotar. Em 2010, este percentual caiu para 38%, onde 29,6% são indiferentes à cor e 1,93% aceita apenas crianças negras. Os dados apontam uma mudança na mentalidade dos candidatos a adotante. Entre crianças e adolescentes que esperam a adoção, 65% são negros, pardos, indígenas ou asiáticos.
“A queda da preferência por crianças brancas significa um avanço social tremendo. Acredito que isso tenha a ver com o Cadastro Nacional de Adoção e a nova lei da adoção (veja quadro na página 26). O processo acelerou porque o encontro entre adotantes e crianças à espera de adoção começou a ser mais ágil”, explica a defensora pública e coordenadora dos defensores públicos na área de família e civil, Marta Juliana Marques Rosado. “Toda criança tem direito a convivência familiar. Estas crianças negras estavam sendo preteridas disso, bem como as que tinham alguma deficiência física. Quando nunca, elas ficavam o resto da sua infância e adolescência no abrigo, até completar 18 anos”, conclui o defensor público da infância e da juventude de Belo Horizonte, Wellerson Eduardo Corrêa.
Mas, ainda assim, a diferença entre o número de candidatos a adotante e o número de crianças à espera da adoção é alarmante. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, 5.369 crianças de 0 a 17 anos foram registradas no Cadastro Nacional de Adoção em todo o Brasil até o dia 12 de agosto deste ano. Entre elas, 2.939 são meninos e 2.355 são meninas. O total de pais candidatos a adoção é bem maior: 28.988. Esta equação não fecha porque, além da questão racial, existem ainda outras barreiras. “O que observamos é que a criança que passa dos seis, sete anos de idade, já não consegue acolhimento na família substituta nacional. Aí, elas vão para famílias substitutas estrangeiras. O brasileiro possui resistência em adotar crianças mais velhas, o que chamamos de adoção tardia”, explica Corrêa.
Quebra de paradigma
A psicóloga Cintia Liana Reis de Silva atua como especialista em psicologia conjugal e familiar. Ela trabalha com adoção desde 2002 e foi perita da Vara da Infância e Juventude de Salvador - BA, um dos Estados brasileiros com a maior proporção de negros na população. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, PNAD, 14,4% da população baiana são negros e 64,4% pardos. Atualmente, Cintia atua na Itália como colaboradora de uma entidade de adoção internacional.
Segundo a psicóloga, um dos motivos que levaram à mudança nos dados do Cadastro Nacional de Adoção é a falta de crianças com os perfis procurados pelos candidatos a adotantes. “Em 2004, quando comecei a coordenar o serviço de psicologia da Vara da Infância e Juventude, existia um grande número de adotantes querendo meninas, brancas e recém nascidas. Em 2008, o quadro era completamente diferente. Muitas pessoas buscavam um perfil mais flexível, sem preferência de sexo ou cor de pele, além de crianças maiores de dois anos. Lembro-me que um casal alterou seu pedido no Cadastro Nacional de Adoção de uma criança de até dois anos, para uma de até 12. Acabaram adotando um menino negro de sete anos. Eles nutriam um amor imenso e hoje, três anos depois, estão muito felizes. Para a criança, o que importa é o amor que recebe, o amparo, os cuidados e a proteção. Não importa se terá só pai ou só mãe, se estes serão brancos ou negros ou que classe social terão”.
O medo de que as crianças mais velhas tragam alguma carga emocional da convivência que tiveram com os pais biológicos ou na instituição ou abrigo onde elas se encontravam antes de serem adotadas é um dos motivos que levam os candidatos a exigir crianças mais novas. “As pessoas acham que quanto menor a criança, mais absorverá a nova educação e mais se assemelhará a um filho biológico. Como acham que a criança ainda não tem uma personalidade formada, acreditam que não trará tantas recordações desagradáveis e hábitos da instituição ou da família de origem. São fantasias sociais, grandes mitos”.
Cintia explica que quando a criança se sente verdadeiramente amada e aceita, ela quer se tornar parecida com os novos pais. E isso, de fato, ocorre, independentemente da idade. “Se idade fosse assim tão importante para o vínculo, não existiriam tantos filhos biológicos com tantos problemas e se voltando contra os pais. Não existe uma fórmula. Existem situações complexas que devem ser tratadas com cuidado e afetividade”.
Para a psicóloga, a mudança nas exigências no Cadastro Nacional de Adoção pode ser explicada também pelo fato de que muitas celebridades como Madonna, Sandra Bullock e Angelina Jolie, têm adotado crianças negras. Existe uma imitação, mesmo que inconsciente, do comportamento de pessoas a quem se admira. “Quando alguém respeitado, conhecido e bem-sucedido adota, sempre abre novos caminhos e fortalece desejos. Isso faz com que as pessoas vejam como uma espécie de moda e como algo muito valioso, que só alguém bem resolvido e bem estruturado faz. E isso todo mundo quer ser”, afirma.
Para os defensores públicos, Wellerson Corrêa e Marta Rosado, a adoção é um ato de amor. “Os pretendentes têm que comprovar que estão amadurecidos para a paternidade. São pessoas que estão dispostas e sabem amar. A adoção é um desafio. Uma caixinha de surpresas. Mas é um processo irrevogável, como uma maternidade ou paternidade natural. A criança não virá pronta. Virá como um filho biológico, com todas as virtudes, mas também com todos os defeitos”, explica Corrêa. “As pessoas têm que estar preparadas para, quando aparecerem os defeitos, não colocarem a culpa na adoção”, completa Rosado. “É como aquele ditado: você ama não por causa de, você ama apesar de, não é?”, finaliza Corrêa.
Casos de amor
A empresária Silvia Rocha Veloso, de 49 anos, nunca havia pensado em adotar. Seus dois filhos já estavam crescidos quando ela conheceu Luana, então com dois anos, enquanto trabalhava como voluntária na extinta Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, Febem, em 2004. Como Silvia e a menina nutriram carinho uma pela outra, a empresária resolveu apadrinhá-la.
Luana e seu irmão, Jacson, então com oito meses de idade, tinham sido levados à Febem depois de uma denúncia de maus tratos por parte de seus pais. Enquanto estavam na instituição, sobre proteção do Juizado da Infância, os irmãos esperavam pela decisão da justiça, que fazia um trabalho de reintegração familiar. A dúvida era se seriam entregues de volta à família ou iriam para a lista de adoção.
O juiz responsável pelo caso decidiu que as crianças não tinham condições de voltar a viver com os pais biológicos. Luana e Jacson foram para a lista de crianças disponíveis para adoção e Silvia, com o apoio do marido Eugênio e dos filhos, pediu a guarda da menina. “Quando saiu a guarda eu falei para a Luana que, a partir daquele dia, não era pra ela me chamar mais de tia, que poderia me chamar de mãe. Perguntei: ‘você quer que eu seja sua mãe?’, e ela respondeu: ‘quero!’. Assim que eu virei as costas, era mãe pra cá, mãe pra lá. Ela tinha três anos e meio, mais ou menos”.
Depois de conseguida a guarda, a advogada de Silvia registrou um pedido de adoção, e ela e o marido passaram por entrevistas e visitas de assistentes sociais. Posteriormente à finalização do processo, uma assistente do juiz da Vara Civil da Infância e da Juventude de Belo Horizonte entrou em contato com Silvia para saber se ela gostaria de adotar o irmão da filha, Jacson. “Infelizmente, nem financeiramente nem psicologicamente eu poderia adotá-lo. Eu não tinha estrutura para ter duas crianças. Soube depois que um casal sem filhos adotou o Jacson”. Uma das assistentes sociais do processo do casal adotivo de Jacson entrou em contato com Silvia, certa vez, pedindo que ela desse seus contatos aos pretendentes caso eles ou o Jacson, mais tarde, quisessem entrar em contato com sua filha, Luana. Silvia autorizou e passou todos os contatos, mas nunca foi procurada.
A história de amor de Eneida Cabral de Lacerda e Silva, de 40 anos, com seu filho Gustavo também teve início em uma visita a um abrigo. Lá, a servidora pública conheceu e se apaixonou pelo menino, então com um ano e 11 meses. Ela já tinha um filho, Rafael, que sofre de deficiência mental, e havia tentado engravidar várias vezes, sem sucesso. Conheceu Gustavo, hoje com oito anos, quando já tinha desistido de tentar a segunda gravidez. “Quando cheguei, vi o Gustavo e me apaixonei. Não fui com intenção de buscar uma criança e nem de adotar. Foi a presença dele que me fez querê-lo. Foi um encontro lindo. Ele era um pouco desconfiado, mas pegou na minha mão e me chamou para passear com ele no primeiro momento que me viu”.
O processo de adoção de Gustavo teve início como o de Luana, com o apadrinhamento. Enquanto cuidavam do menino durante três meses concedidos pela justiça, Eneida e o ex-marido, Márcio, decidiram adotá-lo. Mas o processo teve um contratempo. Gustavo ainda estava vinculado ao poder do pai biológico. “O processo correu bem, a assistente veio aqui em casa, tudo aconteceu direitinho, mas ela me disse que o Gustavo não estava na fila de adoção, porque o pai ainda tinha sua guarda. Só a mãe que não”. A adoção só aconteceu depois do pedido de destituição e da autorização do pai. “Quase morri quando ela disse que, se o Gustavo fosse para a fila de adoção, ele seria adotado logo, logo por outra pessoa”.
Entre pais e filhos
Eneida e Silvia concordam que a paternidade e a maternidade através da adoção não é uma escolha racional. É algo inexplicável, uma escolha do coração. “No dia em que meu pai faleceu, saiu a adoção definitiva do Gustavo”, conta Eneida. “Ele é uma criança extremamente amável comigo, com os irmãos e com o pai. Ele sempre me fala: ‘mãe, quando eu nasci você estava nos meus sonhos’”.
O preconceito é uma das barreiras que as mães e as crianças têm que enfrentar. Silvia conta que sofre com o julgamento dos outros, mas que é Luana quem mais sente. “Vejo pessoas, até dentro da minha família, que têm preconceito por que os primos da Luana são todos loirinhos. Tentei afastar ela dessas pessoas e até da família, mas a psicóloga me aconselhou a não fazer isso. Disse que ela tinha que aprender a conviver com essas coisas. E a Luana sente. Ela já me pediu para pintar o cabelo dela de amarelo, porque ela queria ficar igual a mim e à irmã dela. Eu, meu marido e os irmãos dela falamos sempre que ela é linda, que a cor dela é linda”, diz.
As mães contam que a adoção é mais que um ato em favor da criança. É um ato em favor de si, da família e do amor nutrido entre pais e filhos. “O Gustavo completa a gente. Completa a nossa família. Lógico que não é fácil, mas nenhuma criança é. Escuto muita gente falando que fui corajosa ou que fiz um ato muito bonito, mas eu não vejo por este lado. Fiz pelo prazer em tê-lo. E digo sempre que quem ganhou nesta história fui eu. Olho para o Gustavo e choro de paixão. Não tem diferença entre ele e os outros filhos. O carinho é exatamente o mesmo”.
Para Silvia, sua vida, hoje, é em função da filha, mas nunca se arrependeu da adoção. “Nossa rotina mudou. Minha vida é totalmente tumultuada por causa da Luana, por ter escolinha de novo, ter que levá-la à psicóloga, psicopedagoga, neurologista. Mas vale muito a pena. Em nenhum momento, por mais trabalho que a Luana me dá, eu e meu marido nos arrependemos. É muito gratificante. Ela é muito carinhosa, amável. Acho que, no final, a gente ganha muito mais do que dá para ela. O retorno é muito bom”.
Postado Por Cintia Liana