Cansados de esperar, muitos casais estão optando por levar as crianças para casa por meio da guarda provisória, em vez de enfrentar todo o processo oficial na Vara da Infância e da Juventude
Por Helena Mader
Francinaldo e Lucimara estão na fila há mais de um ano para adotar uma criança e se queixam da demora: “Só se dá bem quem faz as coisas de forma errada”, diz ele.
A intermediação da Justiça nesse processo é muito importante. Os casais são preparados para a adoção e os riscos para as crianças são muito menores”. Luísa Marillac, promotora de Defesa da Infância e da Juventude
Nem mesmo crianças órfãs ou abandonadas escapam do famoso jeitinho brasileiro. Diante da longa demora para conseguir adotar bebês menores de um ano, casais na fila da adoção burlam a lista de espera para ter um filho nos braços com mais rapidez. Em vez de procurar a Vara da Infância e da Juventude e seguir um processo oficial de adoção, eles levam a criança para casa apenas com a guarda provisória e, muitas vezes, sem nenhum tipo de documentação. A medida é uma forma de driblar a nova Lei da Adoção, que entrou em vigor em novembro de 2009 e trouxe normas mais rígidas para garantir a segurança do trâmite legal. O Ministério Público do Distrito Federal está preocupado com essa estratégia, que coloca em risco todos os envolvidos no processo, principalmente as crianças.
A ação de casais à margem da lei pode ser comprovada por números e deve ser foco de discussão amanhã, quando se comemora o Dia Nacional da Adoção. No ano passado, 180 crianças foram acolhidas em uma família substituta, uma média de 15 por mês. Este ano, a Vara da Infância e da Juventude registrou apenas quatro adoções em mais de quatro meses — média de menos de uma adoção por mês. O número despencou porque esses acolhimentos passaram a ser feitos ilegalmente, sem o acompanhamento da Justiça.
A Lei nº 12.010/09, aprovada em agosto do ano passado e sancionada três meses depois pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criada com o objetivo de diminuir o tempo que meninos e meninas passam nos abrigos até serem inseridos em uma família substituta. A nova legislação proibiu a prática da adoção direta — quando a genitora entregava o bebê à família que escolhesse, sem a intermediação da Justiça. Os tribunais só entravam no caso para homologar uma situação já consolidada.
Até a sanção da lei, essa era a forma preferida pelos candidatos a pais. No ano passado, 62% das adoções foram diretas, 15% dos processos foram abertos por familiares das crianças e apenas 13% dos casos tiveram intermediação da Vara da Infância. E essa prática tão arraigada não sumiu rapidamente dos hábitos dos brasileiros.
Com as mudanças na lei, apenas a Vara da Infância e da Juventude pode indicar para quem esses meninos e meninas serão entregues. Os candidatos devem estar na fila e ter passado por um curso de capacitação. Há apenas três exceções em que a adoção pode ser feita diretamente: quando os interessados forem madrasta ou padrasto da criança, por parentes diretos com os quais haja vínculos de afinidade ou nos casos em que o casal que vai adotar tem a guarda legal da criança por mais de três anos. É justamente nesse parágrafo da legislação que as famílias interessadas em burlar a lei se apoiam.
Alerta
Para fazer a adoção direta sem entrar na fila, muitas pessoas recorrem à solicitação de guarda provisória para, depois de três anos, entrar com o processo formal de adoção. A promotora de Defesa da Infância e da Juventude Fabiana de Assis Pinheiro alerta para o risco que essa prática representa. “A guarda é um mecanismo jurídico muito mais frágil do que a adoção, que é incontestável, irrevogável. Já a guarda pode ser suspensa a qualquer momento, seja por solicitação da genitora, que decide pegar a criança de volta, ou por iniciativa da família interessada em adotar, que pode também devolver essa criança à mãe ou até mesmo a um abrigo”, explica a promotora.
O Ministério Público recebeu exemplos recentes de casos como esses. Em um deles, a mãe biológica enfrentava problemas financeiros e decidiu entregar a guarda de seu bebê a um casal conhecido, já que a adoção direta é proibida. Alguns meses depois, ela arranjou um emprego fixo, se arrependeu da atitude e decidiu retomar a guarda do filho. O casal, que sonhava em adotar a criança e já havia desenvolvido um vínculo afetivo com ela, perdeu a guarda.
Em outra situação acompanhada pelas promotoras de Defesa da Infância e da Juventude, um casal que tinha a guarda provisória de um garoto de três anos decidiu devolvê-lo à mãe biológica quando ele começou a apresentar graves problemas de saúde. Como a genitora não queria mais o menino, ele foi mandado a um abrigo. Se em ambos os casos houvesse um processo de adoção formal, não haveria questionamentos ou a possibilidade de devolução da criança.
A promotora Fabiana Pinheiro conta que, antes da lei, recebia uma média de 50 pedidos de adoção de bebês todos os meses. “Agora, esse número se reduziu a praticamente zero. Também diminuiu muito o número de crianças entregues. Onde estão esses interessados em adotar? Onde estão essas crianças? Está bem claro de que muita coisa está sendo feita à margem da lei”, afirma Fabiana.
As mudanças na Lei da Adoção, com a proibição da chamada adoção direta, foram criadas para evitar a possibilidade de eventuais transações comerciais de crianças. Isso acontecia com muita frequência e eram comuns casos de mães que cobravam valores em dinheiro para entregar seus filhos aos casais interessados em adotá-los. Muitas famílias também se sentiam na obrigação de ajudar essas genitoras, com pagamento de cestas básicas, aluguel ou ajuda para outros filhos da mãe biológica. “Com esse tipo de adoção (direta), a criança deixava de ser sujeito e passava a ser objeto”, justifica a promotora de Defesa da Infância e da Juventude Luísa de Marillac. “A intermediação da Justiça nesse processo é muito importante. Os casais são preparados para a adoção e os riscos para as crianças são muito menores”, acrescenta a promotora.
A realidade
30 crianças foram entregues para adoção este ano, 4 foram adotadas formalmente, 170 meninos e meninas estão cadastrados para adoção atualmente.
Fila que se arrasta
O tempo médio de espera para quem deseja um bebê com menos de um ano de idade é de, em média, quatro anos. O casal de advogados Carlos, 31 anos, e Márcia, 32, (nomes fictícios) estava na fila da adoção há mais de dois anos quando, no fim de 2009, uma mulher ofereceu entregar seu recém-nascido. Eles hesitaram, mas acabaram aceitando a proposta. A nova lei já estava em vigor e, portanto, o casal sabia que enfrentaria dificuldades para formalizar a adoção.
O garoto de cinco meses está na família desde que nasceu, mas Carlos e Márcia ainda não conseguiram legalizar a situação. Não têm sequer a guarda da criança. “Nosso argumento é que essa proibição da adoção direta não valeria para a gente, já que estávamos na fila havia muito tempo. Passamos pela análise das equipes da Vara, ou seja, o objetivo da lei de garantir a segurança da criança está resguardado”, afirma Carlos. “O menino acolhido informalmente pelo casal é negro e tem problemas de saúde — perfil que na maioria das vezes reduz o interesse dos candidatos à adoção. “Se não estivesse com a gente, certamente ele estaria largado em um abrigo. Vamos comprar essa briga”, finaliza o advogado.
Queixa
Quem continua na fila reclama das adoções à margem da lei, que tornam a espera ainda mais longa. O servidor público Francinaldo Silva, 40 anos, e a assistente técnica Lucimara Ramos Silva, 33, decidiram adotar uma criança há quase quatro anos. Entre a escolha e a efetiva inscrição na fila, esperaram mais de 12 meses. Eles reclamam da lentidão do processo. “A fila não anda, é desanimador. A gente quer fazer tudo certinho, como a lei manda. Mas só se dá bem quem faz as coisas de forma errada”, reclama Francinaldo.
Lucimara já pensa em alternativas para realizar o sonho da maternidade. “No cadastro, informamos nosso desejo de receber uma criança menor de dois anos. Estamos pensando em ampliar essa faixa de idade para ver se o processo anda mais rápido”, conta a assistente técnica. “Me sinto passada para trás quando vejo que a fila só anda para quem dá um jeitinho. Já nos ofereceram crianças, mas tenho medo e prefiro aguardar”, conta Lucimara. (HM)
Autora: Helena Mader
Por Cintia Liana
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