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Por Evanisa Helena Maio de Brum e Lígia Schermann
Numa perspectiva histórica, encontramos o início do estudo das primeiras relações no trabalho de Freud. Em seu artigo "Instintos e suas vicissitudes", escrito em 1915, argumenta que a criança possui necessidades fisiológicas que devem ser satisfeitas, sobretudo de alimento e conforto, e que o bebê se torna interessado em uma figura humana, especificamente a mãe, por ela ser a fonte de sua satisfação. Na teoria dos instintos, a vinculação com a figura materna é vista como impulso secundário, ou seja, que o bebê se liga à mãe afetivamente como conseqüência de esta ser o agente de suas satisfações fisiológicas básicas.
Outro estudioso das relações vinculares e da formação do apego é o psicanalista René Spitz. Trabalhando em um orfanato, Spitz (1945) observou que os bebês que eram alimentados e vestidos, mas não recebiam afeto, nem eram segurados no colo ou embalados, apresentavam a síndrome por ele denominada hospitalismo. Esses bebês tinham dificuldades no seu desenvolvimento físico, faltava-lhes apetite, não ganhavam peso e, com o tempo, perdiam o interesse por se relacionar, o que levava a maioria dos bebês ao óbito. René Spitz descreveu, portanto, o resultado da ausência dos pais e do afeto como fator determinante no desenvolvimento com prognóstico reservado.
Erik Erikson, psicanalista e teórico de grande influência sobre o estudo do desenvolvimento, em seus trabalhos desde 1950 até 1985, partilha de alguns aspectos da teoria de Freud, embora existam diferenças fundamentais entre suas teorias. Erikson (1980) aborda a grande importância dos anos iniciais para o desenvolvimento, porém, não deu ênfase à centralização dos instintos e impulsos, focalizando, em seu lugar, o surgimento gradativo de um senso de identidade que ocorre pela interação do sujeito com seu meio ambiente. O primeiro dos oito estágios apresenta a crise de confiança básica versus desconfiança. Expõe que nele o comportamento do principal provedor de cuidados (comumente, a mãe) é fundamental ao estabelecimento, pela criança, de um senso de confiança básica. Para que ocorra uma finalização bem-sucedida dessa tarefa o genitor precisa amar com consistência e reagir de maneira previsível e confiante para com a criança. Aqueles bebês cujos cuidados iniciais foram erráticos ou severos podem desenvolver desconfiança. Seja qual for o caso, a criança carrega esse aspecto de identidade básica ao longo de seu desenvolvimento, influenciando a solução das tarefas contidas nos estágios posteriores.
Winnicott, psicanalista inglês e teórico das relações objetais, em 1963, descreveu o desenvolvimento emocional primitivo em termos da jornada da dependência à independência, propondo três categorias: dependência absoluta, dependência relativa e autonomia relativa. Para ele, é na fase de dependência absoluta que a mãe desenvolve o que chamou de preocupação materna primária (Winnicott, 1956). Este estado especial da mãe faz com que ela seja capaz de compreender o bebê por meio de uma surpreendente capacidade de identificação, constituindo-se com ele em uma unidade. A mãe, então, auxilia-o a se integrar. Diz o autor que, se na fase de dependência absoluta, não há uma mãe capaz de se conectar com seu bebê, este fica num estado de não-integração, tornando-se apenas um corpo com partes soltas. De acordo com as idéias acerca do desenvolvimento propostas por Winnicott, é aqui que ocorrem as falhas primitivas no desenvolvimento, acarretando o surgimento de patologias mentais.
Bowlby (1969), psicanalista inglês e teórico das relações objetais, descreveu a importância das primeiras relações para o desenvolvimento, formulando, desse modo, a teoria do apego, quando descreve as relações do bebê com sua mãe ou cuidador desde o nascimento até os seis anos de idade. Alude que o ser humano herda um potencial para desenvolver determinados tipos de sistemas comportamentais, como sugar, sorrir, chorar, seguir com os olhos. A conduta instintiva é o resultado do controle desses sistemas comportamentais integrados, que funcionam num determinado ambiente de adaptabilidade evolutiva, em especial, de sua interação com a principal figura deste ambiente, a mãe. Nesta perspectiva, o vínculo da criança com a mãe, chamado por ele de apego, tem uma função biológica que lhe é específica e é o produto da atividade destes sistemas comportamentais que têm a proximidade com a mãe como resultado previsível. Portanto, ao longo do desenvolvimento, a criança passa a revelar um comportamento de apego que é facilmente observado e que evidencia a formação de uma relação afetiva com as principais figuras deste ambiente.
Nessa formulação, não há referência a necessidades fisiológicas e impulsos, sustenta-se ainda que o ato de nutrir desempenha um papel apenas secundário no desenvolvimento desses sistemas comportamentais. Desta forma, torna-se claro que, para Bowlby, a formação do apego não é uma conseqüência da satisfação das necessidades fisiológicas básicas como postula Freud.
Esta descrição de Bowlby coincide com as formulações de Spitz acerca da síndrome de hospitalismo, ou seja, é necessária a existência de uma relação de afeto e de apego como fator primário para um adequado desenvolvimento. Também encontramos respaldo sobre esta questão na teoria psicossocial do desenvolvimento de Erikson, por este autor não se centrar na teoria instintiva freudiana.
Bowlby e Winnicott deixam clara a importância das primeiras relações de um bebê com sua mãe para o desenvolvimento, apesar de haver divergência em pontos importantes na teoria de cada um deles. Estar apegado a uma figura materna (conceito de Bowlby) e ser dependente de uma figura materna (conceito de Winnicott) são coisas muito diferentes, apesar de terem como base a relação vincular mãe-bebê. Nas primeiras semanas, não há dúvida de que um bebê é dependente de sua mãe para que possa sobreviver, mas não está ainda apegado a ela. De acordo com as idéias de Winnicott, a dependência é máxima no nascimento e tende a diminuir ao longo da vida, apesar de seguir sempre de alguma forma presente. Na teoria de Bowlby, o apego está ausente no nascimento e começa, com os meses, a adquirir força. Bowlby (1969) infere que é improvável que qualquer fase sensível de apego comece antes das seis semanas. Acrescenta que o apego torna-se evidente depois que a criança completa seis meses, ficando mais clara sua existência por volta dos 18-24 meses. Portanto, os dois conceitos estão distantes de serem sinônimos.
Bowlby (1969) afirma que existem boas provas de que, num contexto familiar, a maioria dos bebês de cerca de três meses de idade já responde à mãe de um modo diferente em comparação com outras pessoas. Quando vê sua mãe, um bebê desta idade sorrirá e vocalizará mais prontamente e a seguirá com os olhos por mais tempo do que quando vê qualquer outra pessoa. Portanto, a discriminação perceptual está presente. Entretanto, será difícil afirmar que existe comportamento de apego enquanto não houver provas evidentes de que o bebê não só reconhece a mãe, mas também tende a se comportar de modo a manter a proximidade com ela.
O comportamento de apego manifesta-se pelos três meses, tornando-se nitidamente presente por volta dos seis meses de idade da criança e, em regra, prossegue até a puberdade.
Até recentemente, a maioria dos teóricos das relações objetais, em seus estudos sobre interação mãe-bebê, examinou fatores referentes ao papel da mãe neste processo, enquanto menos atenção foi dada às contribuições da criança. Não há dúvida de que a mãe possui, sim, a tarefa de se ligar ao bebê e auxiliá-lo em seu desenvolvimento. Porém, sabemos, hoje, com o respaldo de pesquisadores contemporâneos, que ao bebê também cabe esta tarefa e que este possui recursos para enfrentar tal empreitada. Esta interação, portanto, segue um modelo bidirecional (Schermann, 2001b), em que não apenas o comportamento do bebê é moldado pelo comportamento da mãe, mas também o da mãe o é pelo comportamento do bebê.
Autores e pesquisadores contemporâneos, como Brazelton (1988), Schermann et al. (1994), Schaffer (1996), Wendland-Carro et al. (1999), Klaus & Kennell (2000), Claussen & Crittenden (2000) e Schermann (2001b), abordam o quanto os bebês recém-nascidos apresentam uma impressionante capacidade de responder às interações já nos primeiros minutos. Iniciam a vida capazes de fazer discriminações importantes e de localizar objetos por meio de várias indicações perceptivas. São capazes de realizá-las pelo olhar, de identificar a voz do pai e da mãe. Pelo sexto dia de vida, um bebê já é capaz de identificar o cheiro da mãe. O paladar também é altamente desenvolvido em bebês após o nascimento. Eles gostam do conforto, da proximidade, e irão com freqüência moldar-se ao corpo de seus pais. Portanto, estes pesquisadores corroboram ao que postulam Bowlby e Ainsworth sobre a existência de uma relação vincular estreita entre o bebê e sua mãe já nas primeiras horas de vida, enfatizando as capacidades do recém-nascido para a interação.
Schaffer (1996) diz que a criança com quatro semanas já se comporta diferentemente com sua mãe, seu pai e com estranhos. Expressões emocionais, rapidez de movimentos, responsividade, tensões e brincadeiras são estes e muitos outros atributos que diferenciam as pessoas e ajudam a produzir estilos distintos de interações. Complementa que as características temperamentais da criança, que são inatas, até mesmo em crianças muito novas, ajudarão a determinar o curso da interação e influenciarão o comportamento da outra pessoa.
Nesse sentido, Bee (1997) cita que, mesmo sendo tão importante, esse programa inato das capacidades da criança depende da presença de um ambiente mínimo esperado, sendo essencial a formação do elo afetivo e da oportunidade de pais e bebês desenvolverem um padrão mútuo de entrosamento de comportamento de apego.
O trabalho de Ainsworth et al. (1978) foi fundamental na identificação dos diferentes padrões de apego, classificação que foi possível ser formulada através da "situação estranha", um procedimento que foi elaborado especialmente para este fim. Consiste, resumidamente, em uma série de sete episódios em laboratório: a criança, inicialmente, está com a mãe, depois, com a mãe e um estranho, sozinha com o estranho, reunida à mãe; sozinha; e, depois, de novo, reunida com o estranho; e, então, com a mãe. Ainsworth sugeriu que as reações das crianças a essa situação poderiam ser classificadas em três tipos: seguramente apegados à mãe (70% da amostra); ansiosamente apegados à mãe e esquivos (20% da amostra); e ansiosamente apegados à mãe e ambivalentes (10% da amostra). O estabelecimento dos distintos padrões de apego vai depender, em grande parte, da sensitividade materna às necessidades infantis, assim como, a capacidade da criança de usar a mãe como base segura, a partir da qual explora o mundo e para onde retorna em situação de perigo ou angústia.
Sensitividade materna, de acordo com Ainsworth et al. (1978), é a habilidade da mãe em perceber, interpretar e responder de forma adequada e contingente aos sinais da criança. A mãe muito sensitiva é bastante atenta aos sinais da criança e responde a eles pronta e apropriadamente. No outro extremo, está a mãe muito insensitiva, que parece agir quase que exclusivamente de acordo com seus desejos, humores e atividades, podendo responder aos sinais do bebê, mas fazendo-o com atraso.
Schaffer (1996) e Claussen & Crittenden (2000), partindo das definições de Ainsworth e Bowlby, dizem que, embora o conceito de sensitividade materna tenha suporte em pesquisa, sua definição não é clara. Segundo Claussen e Crittenden, isso ocorre devido ao fato de este conceito abarcar duas questões distintas: primeiramente, a interpretação dos sinais da criança (sensitividade) e, depois, a adequada execução de respostas (responsividade). Dizem que, na escala original de Ainsworth, sensitividade incorpora ambas habilidades, tanto para perceber e interpretar acuradamente os sinais da criança quanto para responder apropriadamente e prontamente a esses sinais. Destacam que, conceitualmente, isso é problemático, pois esses são passos diferentes no processo de informação e formação de vínculos afetivos, não estando necessariamente vinculados.
As autoras acima referidas conceituam sensitividade como uma construção diádica, focalizando o temperamento e as características únicas tanto da criança quanto do cuidador, e não somente como uma característica dos pais. Portanto, alguns pesquisadores têm se concentrado mais no conceito de sincronia da díade, em vez de apenas dos pais, capturando assim a contribuição de ambos, pais e crianças, para a interação.
Desde a década de 1960 esses aspectos vêm sendo estudados; a pesquisa de Schaffer e Emerson, realizada em 1964, com 60 crianças escocesas, tinha o objetivo de identificar as condições associadas ao fato de o bebê apegar-se à mãe num alto ou baixo grau de intensidade, medida pelos seus protestos quando a mãe se afastava. Os pesquisadores concluíram que nas crianças com alta intensidade de apego às mães não havia associação significativa com as variáveis alimentação, desmame, treinamento dos hábitos de higiene, sexo da criança, ordem de nascimento e quociente de desenvolvimento. Em contrapartida, duas variáveis, relacionadas ao apego e que envolvem o conceito de sensitividade materna, destacaram-se como claramente significativas: a presteza com que a mãe respondia ao choro do bebê e o grau com que ela própria iniciava a interação social com ele.
Mais recentemente, Wendland-Carro et al. (1999) estudaram 36 mães parturientes e seus recém-nascidos, examinando uma intervenção que analisa a influência da resposta sensível da mãe para o seu bebê. Um grupo experimental recebeu um programa de intervenção desenvolvido para incrementar a interação entre mãe-filho. Foi apresentado um vídeo com informações acerca das competências dos recém-nascidos para interação, motivando as mães a se envolverem e interagirem mais intensamente com seus filhos. Os pesquisadores procuraram direcionar a atenção da mãe para a importância da descoberta da individualidade da criança no tocante ao temperamento, à preferência para o contato físico e à reação à situação de pressão. Um segundo grupo recebeu uma intervenção, também em forma de vídeo, com informações que davam ênfase à habilidade de cuidados básicos. Um mês após, foi feita uma observação na casa dos bebês para avaliar a sincronia e a assincronia entre mãe e filho. O primeiro grupo mostrou uma grande freqüência no tocante às ocorrências sincrônicas que envolviam as trocas vocais, observação dos parceiros e contato físico. Havia, também, nesse grupo, diferenças positivas na responsividade das mães para com o choro e a resposta involuntária da criança.
Acredita-se, portanto, que a qualidade da interação inicial mãe-bebê é um importante fator mediador entre os eventos perinatais e o desenvolvimento sociocognitivo da criança (Schermann, 2001a). Outros pesquisadores, também, argumentam que os primeiros meses de vida da criança são primordiais para o desenvolvimento da conduta de apego entre o bebê e sua mãe (Bowlby, 1969; Ainsworth et al., 1978; Schaffer & Emerson, 1964; Brazelton, 1988; Bee, 1997; Wendland-Carro et al., 1999; Klaus & Kennell, 2000 e Claussen & Crittenden, 2000). Sendo que quando há o desenvolvimento de apego seguro, como postula Ainsworth et al. (1978), tem-se a idéia de um importante fator no bom prognóstico do desenvolvimento afetivo, social e cognitivo de crianças.
De acordo com o que foi até aqui descrito, as crianças com apego seguro, ou que rumam à independência, têm confiança no amor de seus pais, sabem que podem confiar neles para compreender e satisfazer suas necessidades e vêem o mundo como um local seguro. A partir da dependência nos primeiros meses e a formação de um apego seguro, ocorre a independência posterior. Os esforços de pais para levarem seus filhos à independência precoce resulta num processo inverso, ou seja, provocam dependência e medos que podem durar a vida toda.
Quando os pais são coerentes em seus padrões de cuidados e prestam atenção aos sinais de seu bebê, oferecem um ambiente altamente favorável para a criança senti-los e ao mundo como confiáveis e responsivos às suas necessidades individuais. Pelo asseguramento repetido de que suas necessidades físicas e emocionais serão satisfeitas, o bebê começa a desenvolver um sentimento de confiança básica e apego que o conduz à construção da independência. Assim, a criança pode usar sua curiosidade, pela base segura formada com seu cuidador, para desbravar e experimentar o mundo.
Vínculos iniciais e desenvolvimento infantil: abordagem teórica em situação de nascimento de risco
Evanisa Helena Maio de Brum; Lígia Schermann
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Luterana do Brasil. Ciênc. saúde coletiva vol.9 no.2 Rio de Janeiro Apr./June 2004
Por Cintia Liana