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Título: Os Desafios da Adoção no Brasil - Construindo uma Nova Cultura
Autor: Fernando Freire
Fonte: in Reencontro com a Esperança – Decebal Andrei – Londrina/PR - 1999
O debate atual sobre a adoção no Brasil assinala um extenso arco de possibilidades, de questões, de olhares, de discursos, de informações, de análises que vão constituindo e tomando sensível uma proposta cultural especificamente brasileira. Pensemos essa experiência.
No fundo, uma razão fundamental motiva a realização de trabalhos como este: a necessidade de transformação. Queremos a mudança - individual e cultural - queremos transformar os métodos existentes para lidar com a infância no Brasil. Buscamos os caminhos, construímos esses caminhos.
Pretendo aqui lançar algumas questões, reunir alguns aspectos e problemas da nossa experiência. Levo em consideração o fato de que o nosso país vem sendo inventado por iniciativas diversas há muito tempo, e que, em tudo o que fazemos, há sempre o sentido de desbravamento e identificação.
Nosso projeto civilizatório, nossas necessidades socio-políticas, nossas iniciativas individuais, mobilizam energias e esperanças, mobilizam um generoso processo que busca o conhecimento, que reconhece as dificuldades do desafio que enfrenta.
Contribuir e interferir nesse processo esse é o nosso objetivo. Qual é o significado e o destino de nosso trabalho em favor da infância, em favor do direito à convivência familiar e comunitária?
Uma questão me parece fundamental: não podemos aceitar nossa realidade atual como uma fatalidade histórica. Consideremos a diversidade cultural de nosso país, e as potencialidades humanas e sociais ainda inexploradas.
As diversas experiências por que passam todos os que vivem a adoção no Brasil propõem diversos tratamentos, diferentes enfoques, que se interceptam, produzindo às vezes conexões inesperadas, na tentativa de tomar visível e real o nosso desejo de transformação.
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500 anos depois, é urgente descobrir o Brasil, o Brasil profundo. Essa é uma tarefa imensa, ainda e sempre inacabada, apesar de todos os esforços das gerações de brasileiros que se sucederam ao longo do tempo.
Sabemos que as experiências vão deixando pegadas com as quais construímos a trilha de nosso trabalho. Na adoção trata-se de traçar um itinerário visível dentro de um território ambíguo, de horizontes pouco definidos, de muitos segredos e mentiras, ficções, de incompreensões, mas também, um espaço no qual são vivenciadas profundas manifestações de humanidade.
Nesse terreno, a cada delimitação que alcançamos fazer (mapeamento), pode corresponder a uma exclusão. Conhecer e trabalhar pela adoção não nos levaria a fortalecer a exclusão, simbólica e real, daquelas famílias que entregam seus filhos? Esse conflito lembra os diversos condicionantes relacionados ao exercício pleno da cidadania no país.
Mapear, aqui, tem o sentido de "buscar entender ". Demarcar o local de nossa ação é o primeiro passo para a afinação civilizatória que pretendemos alcançar no sentido de promover uma cultura da adoção PARA a criança. Dessa afirmação emergirá aquilo que nos é possível fazer na luta contra o abandono e também aquilo que não podemos fazer para que a adoção não seja manchada pela procura de uma criança a qualquer preço.
É preciso reafirmar a necessidade da utopia, (da possibilidade de realização das adoções nacionais para todas as crianças brasileiras) como ultima fronteira do um posicionamento ético diante do pragmatismo cínico daqueles que querem ver a adoção como um direito (ao qual corresponderia o dever do abandono) e da adoção internacional como uma resposta permanente, como um projeto de sociedade.
Precisamos ver na adoção aquilo que ela de fato representa, um espelho da sociedade brasileira, uma expressão de nossas esperanças, ponte possível entre desejo e frustração, entre sonho e realidade. Abandono e adoção, um diálogo feito de contrastes: a dor e a alegria, o individual e o coletivo, o público e o privado, a vida e a morte.
Experiência e Destino
Nossa ambição não é pequena: que todas as crianças possam crescer, felizes e protegidas, amadas e respeitadas em suas famílias. Queremos discutir, mais do que propor, alguns caminhos para que isso se torne possível em nosso país. Acreditar que podemos tomar real esse sonho faz parte de uma intuição profunda, uma intuição nem sempre explícita.
Precisamos sempre lembrar de tudo aquilo que ainda nos separa, na visão que temos do papel da adoção no Brasil, e também, lembrar daquilo que nos une. Nos une a consciência que temos da importância de uma família para uma criança. Pode nos separar as diferentes análises e avaliações quanto à possibilidade de manutenção ou não dos vínculos entre a criança e sua família de origem, da necessidade ou não de sua colocação em família substituta, das chances de êxito na procura de candidatos capazes para as adoções tardias, inter-raciais, de grupos de irmãos, de crianças com necessidades especiais.
Na adoção, como em outras áreas, precisamos pensar globalmente e agir localmente. Podemos reunir as experiências de outras países, e adequá-las (adaptando-as à nossa realidade social, mas precisamos, fundamentalmente, criar soluções locais, nascidas da nossa experiência, das nossas necessidades, dos nossos problemas e da nossa capacidade de resolvê-los.
Precisamos continuar impulsionando a atividade acadêmica, que continuamente refina novos enfoques de abordagem do tema da adoção.
Analisemos alguns tópicos relacionados ao trabalho com adoção:
1. Qual o objetivo maior que queremos alcançar;
2. Qual a questão central a enfrentar;
3. Que enfoque cultural devemos privilegiar;
4. Qual o método;
5. Qual o âmbito preferencial para sua implementação;
6. Quais as táticas possíveis para a realização desses objetivos.
1. Objetivo: construir uma nova cultura
O que entendemos por "uma nova cultura"? O que queremos ver implementado? Que cultura queremos? Cultura, para quê?
A cultura que buscamos é aquela que contribua para a formação e o desenvolvimento das adoções voltadas essencialmente PARA o interesse da criança, para a realização das adoções de crianças que perderam definitivamente a proteção de sua família de origem.
Cultura é aquilo que nos permite conviver em sociedade. Hoje, a cultura é aquilo que une os diversos setores da sociedade, na busca de um entendimento mínimo, básico.
A cultura da adoção que desejamos construir a partir dos esforços de todos os que vivenciam suas diversas expressões, é a cultura que faz a ponte entre três universos: o da cultura hoje dominante - a da satisfação do desejo dos candidatos, a da imitação da biologia, a da naturalização do abandono -, o da sociedade, que se esforça para encontrar novos métodos para lidar com as famílias em situação de risco, desenvolvendo mecanismos de solidariedade, e o da personalidade, onde encontramos os espaços dos desejos e das necessidades individuais. Criar possibilidades de diálogo entre esses três universos é o que nos permitirá construir uma nova cultura que tenha chances de ser aceita e assimilada pelo conjunto da sociedade.
Na adoção, precisamos construir a cultura da solidariedade, da coragem, e da competência técnica, - das adoções tardias, inter-raciais, de grupos de irmãos, de crianças com necessidades especiais -, para tornar possível, no futuro, o que parece difícil, ou impossível, hoje.
2. Uma questão central: a formação de nossa identidade cultural.
A ponte entre sociedade-personalidade e cultura dominante, para ser construída, deve envolver aquilo que é cultura em sentido estrito (livros, revistas, radio, televisão) e aquilo que a leva para horizontes mais amplos - a ação cultural transformadora.
Adaptada às necessidades e possibilidades de cada cidade, uma ação em defesa do direito à convivência familiar e comunitária - reintegração à família de origem ou colocação em família substituta - sustentará os esforços no sentido de :
definir noções de identidade (e responsabilidade) social, reforçando a percepção de toda a sociedade para a urgência dessa luta, reconhecendo a diversidade sócio-cultural, promovendo os valores da cidadania. (direito a ter direitos);
contribuir para o aumento da qualidade de vida, renunciando ao egoísmo e à indiferença que corroem o tecido moral de uma sociedade, tornando as cidades mais solidárias, mais participativas, formando cidadãos, aumentando as chances de integração social para uma parte importante da população infantil;
colaborar para a formação de uma cidadania atenta para as situações em que determinadas crianças perdem a proteçãofundamental de seu meio de origem, ou passam a ser por ele ameaçados em sua integridade física e moral, promovendo o diálogo e a compreensão, desenvolvendo competências nas escolas e no trabalho, estimulando a liberdade de pensamento e o intercâmbio aberto de idéias e valores.
3. Qual cultura privilegiar?
A cultura do direito à convivência familiar e comunitária, da colaboração entre os agentes do Estado e a sociedade civil organizada (associações e grupos). Essa colaboração é de fundamental importância, principalmente porque um dos papéis do Estado, ainda é o de não permitir que tudo se reduza a interesses privados. Na adoção, a simples satisfação das necessidades dos candidatos.
A cultura da adoção PARA a criança será construída pelo diálogo permanente - pela criação de espaços próprios para que ele ocorra - entre todos os que vivem essa realidade.
4. O método
Produzir cultura: livros, revistas, organização de eventos, seminários, cursos, congressos. Incentivar a realização de estudos e pesquisas sobre os diversos aspectos do processo adotivo. Socializar a informação. Criar um sistema de comunicação permanente, um sistema de produção cultural, fazendo surgir, e mantendo, um movimento de criação teórica relacionada aos múltiplos aspectos da adoção com suas correspondentes medidas de ordem prática. Ocupar os espaços públicos, fazer uma política social de atenção à criança sem família.
5. O âmbito preferencial (para a ação)
A cultura da adoção PARA a criança deve ser realizada em todas as cidades em que existirem crianças sem família, crianças definitivamente desvinculadas do seu meio de origem (esquecidas em instituições). Sua implementação é dificultada por uma serie de fatores diversos: o amadorismo, o voluntarismo, a inconsistência teórico-prática, o assistencialismo, a falta de consciência, o messianismo, o oportunismo, o cinismo pragmático, o muro do silêncio e das mentiras. Precisamos lembrar que, num país com tamanhas desigualdades sociais, os cenários e os roteiros, são amplos demais, demasiadamente complexos. Desistir, ou avançar com muita lentidão, limitando a ação àquilo que é mais fácil, são os riscos de todas as iniciativas nessa área do trabalho social.
As cidades, com suas características próprias, são os espaços preferenciais para a ação. Em cada uma delas, da megalópole ao mais longínquo vilarejo, devemos fazer surgir o movimento de defesa do direito à família de todas as crianças.
A experiência de uma cidade, passando para outra, e dessa para uma terceira, e assim progressivamente, nas diferentes regiões brasileiras, criando uma REDE relacional, construindo um "nós", "nós" que trabalhamos por esse direito fundamental, um "nós" em cujo interior possam crescer os diferentes "eus" individuais, com suas necessidades e desejos.
Fortalecer os espaços públicos propiciadores de encontros, onde as pessoas estabelecem uma troca de experiências vividas em comum. São nesses espaços construídos para o encontros que as pessoas trabalharão pelo desenvolvimento de uma nova cultura da adoção. Esses espaços devem ser criados, apoiados e fortalecidos. Promover os contatos humanos diretos e prolongados, para a construção de um projeto comum.
A ação deve ser um convite ao diálogo a respeito do inaceitável sofrimento em que vivem as crianças sem família, deve chamar a atenção do resto da sociedade para esse fato, deve provocar uma reação, deve desarmar as atitudes discriminatórias e preconceituosas, deve facilitar a aproximação. A ação de todos que vivem os desafios da adoção, tem como um de seus principais objetivos.... humanizar.
6. As táticas possíveis
Insistir na importância de levar a "cultura da adoção", de forma sistemática e permanente aos mais diversos setores da sociedade através de todos os meios disponíveis. Essas táticas devem ser vistas como andaimes, e elas são, constituídas por todos os avanços já conquistados nos últimos tempos: maior número de publicações, multiplicação de eventos, presença nos meios de comunicação, participação da sociedade civil organizada.
É preciso:
1. Convencer governantes, empresários e a sociedade em geral, de que a cultura da adoção PARA a criança permitirá uma renovação dos valores éticos de regem a vida em sociedade, com beneficies para todos. Lembrar que o desenvolvimento cultural tem exigências próprias que precisam ser atendidas, e que não podem ficar sujeitas a inércia administrativa e burocrática. Prestigiar o trabalho daqueles que promovem a integração familiar de crianças institucionalizadas, tomar esse trabalho um valor social. Trabalhar na formação de um banco de dados.
Um resultado a esperar desse processo de conscientização será o aumento dos financiamentos, públicos e privados, para os trabalhos nessa área.
2. Incentivar o aparecimento e desenvolvimento de esferas de análise e decisão que congreguem, ao redor da luta contra o abandono e a exclusão de crianças, os setores governamentais e não governamentais. Reuniões de análise e discussões a respeito da realidade atual, em todo o país, da criança institucionalizada, de suas famílias, das possibilidades de reintegração, dos limites ainda existentes relacionados à adoção nacional.
3. Criar um sistema de informação cultural de âmbito nacional, utilizando os avanços recentes da comunicação eletrônica. Essa possibilidade continua reduzida em seu alcance porque ainda é grande a ignorância quanto aos seus beneficios. Ainda uma grande parte da população brasileira não sabe o que é feito nessa área, nem o que é possível fazer, nem o que já está disponível. Uma forma privilegiada para promover esse sistema é, sem dúvida, uma maior e melhor utilização dos meios eletrônicos de comunicação. A presença de informação relacionada à adoção em páginas eletrônicas, tem aumentado o contato e as ocasiões de cooperação entre pessoas das mais diferentes regiões brasileiras.
4. Ampliar a presença da "cultura da adoção " no sistema educativo.
O trabalho pelas adoções necessárias adquire o seu pleno significado apenas quando é apresentado às pessoas e aos grupos de uma determinada comunidade. Essa proposta precisa ser mais marcante para que a pessoa ou o grupo possam se apoderar da idéia, possam compreender o seu sentido maior, e aumentar as referências (idéias, conceitos e experiências) relacionadas ao trabalho que realizarão. É preciso que as pessoas saibam para que serve uma cultura da adoção PARA a criançaOs sistemas de ensino no Brasil ainda estão, em grande parte, alienados, afastados da realidade social em que vivem amplas parcelas da sociedade brasileira, com destaque para a população infantil marginalizada. É preciso superar essa alienação, e promover o contato entre esse sistema educativo, formador de opiniões e valores, e a realidade social. Esse contato preparará as pessoas para uma espécie de auto-aprendizado dos valores da cidadania e da solidariedade, tomando-as aptas a selecionar a informação que recebem e analisá-las criticamente. Nunca será demais ressaltar a importância da inclusão da educação em todo o trabalho de defesa dos direitos da criança.
Precisamos traçar um mapa confiável dos desafios, dos avanços e dos obstáculos da adoção no Brasil.
O trabalho em prol de uma cultura, qualquer que ela seja, não tem como prever e garantir resultados. Precisaremos sempre considerar o pluralismo da sociedade brasileira, suas profundas diferenças, suas imensas contradições. Podemos, e devemos, buscar um intercâmbio cultural mais intenso e mais estimulante, precisamos irrigar o terreno ainda árido das consciências adormecidas ou insensíveis. Renovar, arejar, são propostas necessárias.
Todas as iniciativas que favoreçam a integração da população brasileira excluída são necessárias, as que defendem o direito à convivência familiar e comunitária de todas as crianças e adolescentes abandonados o são por ainda mais fortes razões, aqui, essa integração pode significar pelo menos um pouco da luz que nos permitirá continuar sendo....... humanidade.
Autor: Fernando Freire
Por Cintia Liana